Todos os anos realizam-se as Festas de Nossa Senhora do Rosário de Tróia, cujo momento maior é o círio fluvial, onde dezenas de embarcações ornadas levam a imagem da padroeira entre Setúbal e a Caldeira de Tróia. Conta-se que algures pelo século XVI um grupo de pescadores, atingidos por uma furiosa tempestade, refugiou-se na Caldeira, onde encontraram a imagem de uma santa esculpida em madeira. Acreditaram que tinham sido salvos por ela e decidiram construir uma capela em sua homenagem. As festas convocam a população local – mais do que à fé – à memória, confundindo-se já com a simples existência deste espaço de celebração comunitária do povo, dos marinheiros. Hoje a maioria de nós já não é marinheira e muito menos passa o rio Sado, tal é o custo da viagem de barco. A petição da autoria do Bloco para incluir a travessia fluvial Setúbal–Tróia no passe de transportes coletivos está a passos de conseguirmos mudar isso. Afinal, Tróia é de todas nós.
A concelhia do Bloco de Setúbal lançou no dia 21 de julho, durante a Feira de Santiago, uma petição pública para incluir a travessia fluvial do Sado no passe navegante. Em menos de três meses reuniram-se mais de 8 mil subscrições, mais que o suficiente para a petição ser apreciada no Parlamento, tendo a mesma já sido entregue ao Presidente da Assembleia da República no passado dia 19 de outubro.
Esta forte mobilização popular foi possível graças à convicção de tantas camaradas que levaram folhas para os empregos, para todas as feiras do distrito, para os amigos. Com a ajuda de várias artistas como A Garota Não e a Capicua, que partilharam a luta justa pelo território que é de todas nós. Deixo o meu obrigada a todas pelo esforço.
Mas as assinaturas vieram, sobretudo, do reconhecimento da relação histórica da população de Setúbal com Tróia e as praias que frequentou ao longo dos tempos.
Esta é uma reivindicação histórica das pessoas que aqui habitam e que se recusam a serem expulsas e a deixar que os nossos territórios sejam entregues aos super-ricos.
Ao longos dos anos, a Atlantic Ferries, empresa do grupo SONAE concessionária do transporte fluvial, tem vindo a aumentar o custo da travessia para valores insuportáveis para a população trabalhadora.
O preço da tarifa dos catamarans aumentou 300% desde 2007, tendo-se pelo meio acabado com os bilhetes mais baratos para crianças e idosos. O passe desta travessia custa atualmente 92,80€ por mês. Em 2010 era 40€.
Estes preços são completamente desproporcionais, especialmente comparando com outras travessias fluviais no distrito, como as de Cacilhas, Barreiro e Seixal com destino a Lisboa – com distâncias bem superiores à da travessia do Sado – todas a menos de 3€. Quer dizer, o Passe Navegante consegue levar-nos de uma ponta à outra da Área Metropolitana de Lisboa, mas ficamos a ver navios a passar perante uma distância inferior a 1 km, entre Setúbal e Tróia.
o Passe Navegante consegue levar-nos de uma ponta à outra da Área Metropolitana de Lisboa, mas ficamos a ver navios a passar perante uma distância inferior a 1 km, entre Setúbal e Tróia
À desigualdade económica no acesso ao transporte público por parte da população de Setúbal, acrescem-se outros argumentos pela inclusão da travessia no passe. Face aos preços incomportáveis da travessia fluvial, muitos vão de carro à volta por Alcácer do Sal, um percurso de mais de cem quilómetros. Não é novidade que o tempo para travarmos as alterações climáticas aperta, e os transportes coletivos têm de ser uma alternativa acessível e viável se queremos justiça ambiental.
Paralelamente, há cada vez mais pessoas da Península de Setúbal a trabalhar nos hotéis, nos restaurantes e nos projetos de construção no litoral alentejano, dispensando uma larga fatia dos seus rendimentos só para ir trabalhar. Inversamente, também não é admissível que a população do litoral alentejano se veja em tamanho esforço económico para utilizar serviços públicos e administrativos na capital de distrito, como o Hospital de São Bernardo.
O encarecimento brutal da travessia fluvial pela SONAE é uma forma ardilosa de afastar os setubalenses de Tróia, restringindo-a a uma elite endinheirada. A mesma SONAE que está a promover o Troiaecoresort, um empreendimento turístico que vai vedar o acesso dos pescadores à Caldeira a partir de 2024, boicotando assim a festa tradicional dos pescadores que descrevi no início. Não vale tudo.
Curiosamente, o burburinho da petição parece ter acordado, finalmente, alguns partidos para o assunto. De repente, os deputados do Partido Socialista do distrito exclamam o quão óbvia é a necessidade de se resolver este problema, dirigindo uma pergunta ao Ministro do Ambiente e Ação Climática sobre a possibilidade de incluir a travessia no passe. O mesmo Partido Socialista que entregou a gestão da travessia fluvial aos privados, os quais colocam o lucro acima do interesse público.
Os presidentes das Câmaras Municipais de Setúbal, Alcácer do Sal e Grândola também reclamam, do nada, a justeza desta proposta. Três presidentes da CDU que até agora não tiveram punho para projetar os interesses das populações locais. Aos demais desejo as boas-vindas a esta luta de tantos anos da população de Setúbal e do Bloco de Esquerda, que nunca deixou de denunciar o processo da privatização de Tróia e as carências na mobilidade. Folgo em saber que há consenso nesta medida tão sensata e importante para o distrito. A hora de fazemos valer as palavras está a chegar e corrigir esta discriminação social que tem impedido a população com menos recursos de viajar com o passe de transporte público para e de Tróia.
Faço minhas as palavras d’A Garota Não: “a riqueza de Tróia não está só na (deslumbrante) paisagem natural. Sempre esteve (também) na paisagem humana, na diferença e na mistura, no encontro entre o visa gold e o dinheiro miúdo. O pé descalço e o Louis Vuitton. Mas para isso é preciso que os preços dos bilhetes sejam honestos. Mas para isso é preciso que não se exclua. Mas para isso talvez seja preciso que a gente lute.”
Lutamos por preços acessíveis. É uma luta pelo combate às alterações climáticas, pela valorização da comunidade local, pela justiça social e pelo direito ao território. É tempo de acabar com o modelo violento em curso de usurpar a Tróia e todo o litoral alentejano e entregá-lo para usufruto exclusivo dos milionários que arrasam as dunas e expulsam o povo.
A distância entre as margens do rio é pouca e a vontade popular é enorme. Esta causa tão justa só pode merecer a aprovação de todos os partidos, assim cumprindo-se as expectativas de uma população que exige justiça social, económica e ambiental. Só falta que o Governo tenha vontade política de acompanhar a proposta do Bloco e Tróia voltará ao povo.
Artigo publicado em “O Setubalense” a 20 de outubro de 2023