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Tristeza e Esperança

O que a narrativa da tristeza não pode obliterar é que este povo que se indigna faz uma escolha. E essa escolha não é, predominantemente, entre a alegria ou a tristeza. É entre a resignação e a esperança.

A última vaga de manifestações originou uma mudança no discurso relativo ao modo como a população vive o seu embate com a realidade. O 2 de março, para além de ter dado lugar a um obcecado exercício de contagem de cabeças, serviu também para que alguma opinião desenvolvesse a narrativa da tristeza: os portugueses protestam, mas protestam tristes.

É verdade que existem muitas razões para a tristeza. O desemprego atinge índice nunca vistos, a precariedade torna-se natural, a emigração parece roçar os valores da década de 1960. Jovens e menos jovens regressam a casa dos pais. O espaço de autodeterminação dos indivíduos encolhe brutalmente. E, do “lado de lá,” o governo continua no seu posto e os “donos de Portugal” - de Fernando Ulrich a Belmiro de Azevedo, passando por Alexandre Soares dos Santos - não se cansam de propagandear, impunemente, as virtudes do empobrecimento generalizado.

Essa vida declinada no concreto não deixou, naturalmente, de se fazer sentir nos protestos. Por outro lado, estes têm vindo a adquirir formas menos “enquadradas” e expressões reivindicativas mais consentâneas com as múltiplas subjetividades que descem à rua. Também por isso, é um exercício arriscado pretender aferir um sentimento comum que atravessaria a multidão a 2 de março: muitos estariam infelizes, outros zangados, outros tristes, outros contentes. Uma coisa é certa: ninguém estava ali resignado. Todas aquelas pessoas decidiram voluntariamente participar no protesto, inscrevendo o seu corpo e a sua voz naquele rio coletivo. O que significa, por si só, uma vontade clara de um presente diferente.

Não pretendo voltar aqui ao debate sobre um suposto ânimo dominante no 2 de março. Mas é relevante regressar ao tema da tristeza, na medida em que se tem vindo a instalar um discurso que a declara como uma espécie de incontornável “espírito do tempo”. Afinal, diz-se, os portugueses dos “brandos costumes”, o país do fado e do destino, o povo resignado, manifesta-se. Mas manifesta-se como um autómato que reage às difíceis circunstâncias em que está mergulhado. Logo, é necessário “compreender” a massa triste e sonâmbula que – precisamente por ser massa, triste e sonâmbula - é incapaz de dominar os complexos raciocínios que nos dizem que tudo isto é, no essencial, inevitável. Como explicou cinicamente Belmiro de Azevedo, na mesma entrevista em que defendeu salários de miséria, “enquanto o povo se manifesta, a gente pode dormir mais descansada. O pior é quando não se manifesta.”

O que a narrativa da tristeza não pode obliterar é que este povo que se indigna faz uma escolha. E essa escolha não é, predominantemente, entre a alegria ou a tristeza. É entre a resignação e a esperança. Uma esperança magoada, em tantos casos. Mas que não deixa de estar aberta aos futuros possíveis a partir da recusa do existente. O filósofo alemão Ernst Bloch dedicou o seu monumental O Princípio Esperança a explicitar a esperança, não apenas como um estado de ânimo individual, mas como um efetivo princípio gerador do processo histórico. A busca de um lugar-outro, mais belo e feliz, é o mais básico impulso humano. Nas suas palavras, “nem só de pão vive o ser humano; sobretudo quando o não tem”.

Vivemos num tempo em que o conflito entre expectativas e realizações se agudiza enormemente. Um tempo em que nos dizem que viveremos (quase) todos pior e que isso é uma fatalidade. Ou seja, que é necessário esquecermos as expectativas, o futuro desejado e sentido como justo, e focarmo-nos nas realizações, o presente tal como surge diante de nós. Este bloqueio das expectativas é triste, sem dúvida. A sua recusa é esperançosa.

Sobre o/a autor(a)

Historiador, doutorado em História, investigador do CES/UC.
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