Não vale a pena olhar para trás. A saudade do tempo que passou é sempre uma construção mitológica e autocontemplativa: nem chegámos aqui trazidos por uma felicidade que se esvaiu, nem havia uma magia que organizava o nosso mundo e que se esgotou. O novo normal nasceu do que já havia e todas as suas características estavam inscritas no que agora nos parece uma era de placidez, se comparada com a turbulência presente.
Já lá estava a guerra infinita e o “novo século americano”. Uma e outro eram os enunciados dos neoconservadores que chegaram ao poder com o segundo Bush e que desencadearam a ocupação do Afeganistão e depois do Iraque. O facto de esses neoconservadores estarem agora na oposição a Trump, horrorizados com as suas facécias, em nada desvaloriza a continuidade entre as visões do império. Conquistar o Panamá e a Gronelândia, ou colonizar o Canadá, são simplesmente formas bufónicas de exprimir essa mesma ideia da hegemonia mundial, que deve ser levada a sério seja pelas tarifas, seja pela escalada das ameaças, seja pelo aumento exponencial dos gastos militares para engordar o complexo industrial militar. Guerra infinita, é uma mudança sem retorno.
Esse modo de governar assenta na garra do medo. A guerra publicitada à exaustão, a imagem de uma turma de crianças morta em cada dia em Gaza, as pessoas a esvaírem-se em sangue e lágrimas, nada disso é uma mera expressão da verdade televisionada – é uma exibição do argumento do medo. Já se passou a barreira da contenção comunicacional; agora funciona, bem pelo contrário, a intoxicação pela repetição da mortandade. É por isso, e só por isso, que governos europeus podem tranquilamente proibir o direito de manifestação pró-palestiniana ou restringir liberdades de expressão, ou armar Netanyahu e o seu gang. De facto, a designação do inimigo interno passou a ser explicitável como condicionamento da democracia, o que só era sugerido até há pouco. A amputação dos direitos universais é o segundo caminho sem retorno.
Há ainda outra mudança em curso e creio que é a que tem maiores consequências, entre elas a de assegurar que as duas anteriores se tornam o novo normal. É a deslocação de sectores importantes da burguesia para o financiamento e a instrumentalização miliciana da extrema-direita. O compromisso do bufão-mor, Elon Musk, com Trump e agora com a AfD, demonstra a rapidez e a profundidade desta mudança. Sillicon Valley inclina-se para o neofascismo e poderia dizer-se que é coerente: afinal, trata-se de empresas com dominação mundial – como nunca aconteceu na história do capitalismo – e cujo mercado é o consumo das pessoas por si próprias, o que exige um sistema autoritário de condicionamento que Orwell e Huxley não podiam ter imaginado. Portanto, os mandarins da comunicação precisam de governos subordinados que blindem o seu poder. E essa é outra mudança sem retorno.
Guerra infinita, governo pelo medo e comunicação totalizante ao serviço de uma burguesia que acarinha a extrema-direita, é o que temos. E nem chega a ser paradoxal que a burguesia possa voltar aos tempos em que foi mais feliz e nós não. Por isso, não nos serve algum passado redentor, alguma bandeira velha ou algum dispositivo de combate social com os formatos anteriores. A luta pela paz não será equiparável à dos anos 1980, a da democracia não será como a das sufragistas, a dos movimentos populares não repetirá a de 1917, 1936, 1945 ou 1968. É um caminho com escassa bússola. Ainda bem que o podemos compreender no ano novo de 2025.
Este texto é parte da intervenção de Francisco Louçã no podcast “Um pouco mais de azul”, onde também participam o jornalista Fernando Alves e a poeta Rita Taborda Duarte. O podcast completo aqui
