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Tratado de Tordesilhas regionalista

Sobre o processo de eleição dos presidentes e vices das CCDR: se é esta a democracia invocada como grande marca da singularidade do processo, estamos conversados.

O processo de eleição dos presidentes e vices das CCDR, além de perverter os fundamentos da instituição – organismos periféricos da administração central enquanto órgãos desconcentrados do Estado – e de correr sérios riscos de partidarizar a sua gestão, consubstancia duas falácias quanto aos desígnios enfatizados.

Foi apresentado como um passo significativo para a regionalização, como forma de desconcentrar o poder pelas regiões. Sobre esta pretensão, cedo se percebeu que não passava de um embuste – tanto pela atribuição de competências em nada diferente dos modos atuais, quanto pelas declarações da ministra da tutela e do Presidente da República, que se apressaram a dizer que estávamos perante situações diferentes. O objetivo, mais uma vez, é camuflar o que está consagrado na Constituição desde 1976.

Outro trunfo de convencimento foi o de democratizar através do ato eleitoral. Este argumento ainda colheu adeptos – o colégio eleitoral de autarcas a votar para a eleição dos seus representantes regionais. Votar tem sempre uma conotação democrática. Mas votar em quem? E agora se percebe que a democracia também “caiu por terra”. Votar em candidatos “cozinhados” pelas cúpulas dos aparelhos partidários (PS e PSD) sem qualquer auscultação aos autarcas dos seus próprios partidos. O presidente é nosso e o vice é vosso – feitas as contas dos votos em conformidade com o número de eleitos, numa espécie de Tratado de Tordesilhas regionalista. Este convénio partidário do Bloco Central, com quezílias pessoais entre pretendentes e que até apressou remodelação de Secretarias de Estado limita-se a anunciar os candidatos sem qualquer prenúncio de critérios nem exposição de programa de ação.

Para completar a “equipa de sonho” lá temos o outro vice emanado do Governo que ironicamente é dito que resulta de uma eleição interministerial. Não está em causa a confiança pessoal de quem quer que seja, mas sim a transparência do processo e o conhecimento público dos programas a sufragar. Importa lembrar que estes organismos, nos próximos tempos, vão gerir largos milhões de euros. Aliás, este facto foi o que motivou a antecipação do processo e daí este mandato ser de cinco anos.

Tal como está montado o cenário eleitoral, estamos perante uma apelidada nova intenção com velhos e viciados métodos de afunilamento democrático. Agarra-se os eleitores aos ditames dos selecionados para eleitos, perante uma efetiva nomeação que passa de administrativa para partidária. Escolhidos os que são do agrado dos chefes, ordena-se aos subordinados municipais para votar. Este voto em urna acaba por ser um referendo para ratificação das escolhas pessoais dos “donos” do poder autárquico.

Se é esta a democracia invocada como grande marca da singularidade do processo, estamos conversados.

Artigo publicado em publico.pt a 29 de setembro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professor. Dirigente do Bloco de Esquerda
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