Transformar a crise em oportunidade, não é esse o refrão?

porFrancisco Louçã

26 de fevereiro 2023 - 22:37
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O que os liberais dos vários matizes nos propõem é simplesmente proteger o maior lóbi de Portugal, a teia finança-imobiliário-turismo. Percebo que a causa mereça tanta devoção, é a fonte do seu poder.

Há mais de 300 anos, Bernard Mandeville, um médico holandês que vivia em Londres, ganhou fama pela publicação de uma sátira antiutópica, “A Fábula das Abelhas”, “uma espécie de conto”. Nele contou uma experiência feita por Júpiter, que teria forçado as abelhas a serem virtuosas, o que provocou o desastre. O vício da ganância será benéfico, concluiu, é o que cimenta a vida social, apelando assim à avidez e ao egoísmo como fundamentos do bem-estar coletivo, escrevendo que viver “sem grandes vícios é uma vã utopia instalada no cérebro”. Ainda hoje os liberais adoram a chalaça e fazem dela o mote das suas vidas, atrevendo-se mesmo a uma lição social: se todos formos gananciosos, mais próspero será o país. Para Mandeville, só o vício poderia ser o pilar da sociedade, dando o exemplo dos hospitais, “o orgulho e a vaidade construíram mais hospitais do que todas as virtudes juntas”.

Este texto, dos mais divulgados à sua época, suscitou polémica, não só em nome dos preceitos éticos que dificilmente podiam admitir tal elogio ao vício ou por não fazer a menor ideia da vida da colmeia, mas igualmente entre quem notou que a metáfora era destrutiva. Um liberal, o fundador da economia moderna, Adam Smith, opôs-se-lhe poucos anos depois, em 1759, no seu livro sobre os “Sentimentos Morais”. A crítica de Smith foi implacável: nem aceitava a abolição da distinção entre o vício e a virtude, nem que a frivolidade da vaidade pudesse ser considerada a origem da virtude. “A grande falácia do livro do Dr. Mandeville é representar toda a paixão como globalmente viciosa”, tanto mais, acrescentou Smith, que “a simpatia não pode ser, em qualquer sentido, vista como um princípio egoísta” e, para ele, a simpatia era um dos fundamentos morais da sociedade. Outro liberal, Jean Baptiste Say, reforçou este ponto de vista: as instituições da sociedade moderna devem ter como motivação não a ganância, mas sim a utilidade social e até o propósito de reduzir a desigualdade das fortunas. Que os liberais modernos ignorem este debate inconveniente, isso faz parte do seu instinto de sobrevivência. O problema é que se propõem fazer de Júpiter para, como se diz, transformarem a crise numa oportunidade, a da ganância. O melhor exemplo, como não podia deixar de ser, é o que se passa na habitação.

Se não funciona, venha mais

Em poucos dias, um liberal, Ricardo Arroja (não confundir com outro Arroja que propõe a legalização do trabalho infantil e a venda de votos e que, naturalmente, é do Chega) e o PSD vieram dizer que têm uma solução para a crise da habitação: mais oferta. O PSD apimenta a coisa com um sistema build-to-rent; o uso do ‘portuglês’ garante o pergaminho liberal da proposta, que, tendo “cash flows”, “break-even-points” e estando “focada” no seu “desenho”, fica certamente perfeita. Acrescente-se uns estímulos fiscais, dinheiro em caixa, mais o fim de alguns impostos e uma misteriosa “habitação combinada”, e chegamos exatamente onde estávamos.

A oferta que falta é a construção pública, acordos com os proprietários para reabilitar e controlo de preços

O que os liberais dos vários matizes nos propõem é simplesmente proteger o maior lóbi de Portugal, a teia finança-imobiliário-turismo. Percebo que a causa mereça tanta devoção, é a fonte do seu poder. Aliás, que isso esteja a provocar uma bolha especulativa (diz a contida Moody's), não importa, porque a efervescência da procura externa é suficiente para manter a inflação. E, se não for, inventa-se: os “nómadas digitais” são a mais recente raça de colonizadores que desembarcou na nossa praia, festejados como enviados divinos. Como se percebe, se o Estado financiar essa oferta oferecendo terrenos ou impostos, ou se houver mais investimento neste negócio, os empreiteiros farão pela vida e construirão casas para os preços mais altos (de 2019 a meio de 2022 mais de metade das compras de casas foi a pronto, isto não diz nada?). O aumento da oferta nestas condições só agrava a impossibilidade de jovens e classes médias e populares acederem a habitação. A ganância de Mandeville não cria virtude pública.

Se é problema, é com o BCE

A isto respondeu o governo com subsídios, para aguentar provisoriamente o arrendamento por jovens, e com exuberantes propostas, obras de Santa Engrácia, de construção de casas que teriam preços controlados. Mas entretanto, para satisfazer o lobby, em 2023 autoriza um novo hotel por cada cinco dias, só em Lisboa serão mais 17. E permite a dupla espoliação de uma grande parte da população: em primeiro lugar através do traiçoeiro aumento dos juros, que afeta diretamente cerca de 1,3 milhões de famílias — os juros de um crédito de €150 mil a 37 anos, com 1% de spread, e já não há disso, subiu 73% desde o início de 2022 — e em segundo lugar através do aumento das rendas. O caso dos preços da diária na Bobadela no verão papal é somente um retrato, nada anedótico, da oferta à Mandeville, o tal que garantia que viver “sem grandes vícios é uma vã utopia instalada no cérebro”.

Ora, com 750 mil casas desabitadas num país de dez milhões de habitantes, e mesmo que uma parte delas seja ‘incolocável’ no mercado por razões de uso familiar ou estejam degradadas, o que restaria para reabilitação é o que não se constrói em quarenta anos do ritmo atual. Essa é a oferta que falta: construção pública, acordos com os proprietários para reabilitar e controlo de preços. Mas essa política exigiria o que falta, a “simpatia” de Smith.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 17 de fevereiro de 2023

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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