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Transformar a biblioteca numa aventura

Umberto Eco faleceu a 19 deste mês, como bibliotecária gostava de lembrar o que lhe fico a dever.

Um lema carregado de prazer, de persistência e luta. Este lema sintetiza tudo quanto aprendi, sei e pratiquei entre as quatro paredes da biblioteca. Valeu sempre mais do que todos os manuais juntos que fui obrigada a ler e a escrutinar. As mais das vezes intragáveis, longe das necessidades dos leitores, da sua paciência e urgência para se embrenharem nas artimanhas que cada biblioteca pode representar. Umberto Eco faleceu a 19 deste mês; como bibliotecária gostava de lembrar o que lhe fico a dever.

Transformar a biblioteca numa aventura. Este lema sintetiza tudo quanto aprendi, sei e pratiquei entre as quatro paredes da biblioteca. Valeu sempre mais do que todos os manuais juntos que fui obrigada a ler e a escrutinar

No Verão de 85 li sofregamente O nome da rosa. Para lá de todas as razões que tornaram famoso o romance, a mim marcou-me pelas alusões finas ainda que diretas ao espaço da biblioteca, ao valor da mensagem escrita, à imperiosidade da leitura. As referências claras à organização que se quer indispensável numa biblioteca: “ao longo das paredes… enormes armários, carregados de livros, dispostos com regularidade. Os armários tinham uma etiqueta numerada, assim como cada uma das prateleiras: claramente, os mesmos números que tínhamos visto no catálogo”; ou à riqueza interminável que uma biblioteca guarda: “…a biblioteca era ao mesmo tempo a Jerusalém celeste e um mundo subterrâneo nos confins entre a terra incógnita e os infernos”; ou à responsabilidade social da biblioteca: “…a biblioteca não podia ser ameaçada por nenhuma força terrena, era portanto uma coisa viva…mas, se era viva, porque não devia abrir-se ao risco do conhecimento?”. Três questões pertinentes para qualquer técnico de biblioteca e, por maioria de razão, para o leitor.

Aspetos fundamentais num apelo às bibliotecas quando estas se tornam um cenário privilegiado para o exercício de normas, regras, soluções tecnológicas, quantificações várias esquecendo os livros, a complementaridade entre eles, a cumplicidade temporal.

De Bibliotheca - Este livrinho, precioso, um manancial de sugestões e análise crítica, constitui um marco para a compreensão do lugar das bibliotecas, da importância dos livros e uma boa decisão seria considerá-lo nos currículos académicos, objeto de leitura obrigatória e discussão

Mas o texto mais marcante sobre o lugar de prazer e construção que as bibliotecas corporizam é, inquestionavelmente, o De Bibliotheca (Paris: L’ Échoppe, 1986 ou Lisboa: Difel, 1987), transcrevendo conferência proferida em 1981. Trata-se de um livro pequenino, menos que bolso, mordaz e acutilante. Abunda em passagens conseguidas sobre o que as bibliotecas são, ou deviam ser, colocando o leitor no centro das suas (nossas) preocupações, observações feitas por quem viveu entre os livros, os usou, refletiu ou escreveu. Basta uma citação para se perceber: “…um dos mal-entendidos que dominam a noção de biblioteca é o facto de se pensar que se vai à biblioteca pedir um livro cujo título se conhece…ora, a função da biblioteca […] é de descobrir livros de cuja existência não se suspeitava”. Esta passagem é das minhas favoritas porque nela se reconhece uma dinâmica e uma dialética que continuam a ter ferozes opositores. Destaco ainda o “modelo negativo” arquitetado e proposto para uma biblioteca. Uma obra-prima de dezanove princípios a desafiar os que insistem em sobrevalorizar as normas e a organização em detrimento das pessoas, do conhecimento, da cultura e do saber. Este livrinho, precioso, um manancial de sugestões e análise crítica, constitui um marco para a compreensão do lugar das bibliotecas, da importância dos livros e uma boa decisão seria considerá-lo nos currículos académicos, objeto de leitura obrigatória e discussão. Fui buscar ao De Bibliotheca o lema puxado para título o qual me inspirou num projeto de âmbito nacional, a maior aventura profissional em que me envolvi. Nunca será demais dar o De Bibliotheca a ler. Dá que pensar, até ao incómodo, mas as bibliotecas agradecem.

Sobre o/a autor(a)

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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