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A tragédia demográfica do conservadorismo dos dirigentes médicos

Os médicos estão a mudar, pelas suas gerações mais novas. E essa é a tragédia da elite conservadora que tem dominado as suas estruturas dirigentes: têm os dias contados!

Em 2018, ao sair de um debate sobre eutanásia numa televisão nacional, o meu adversário, médico conhecido no país, aproveitou as câmaras desligadas para me dar um conselho. Segundo ele, qualquer indivíduo “esclarecido” sabia que poderia pôr termo à sua vida, de forma confortável, recorrendo a uma caixa de calmantes, se de facto estivesse em sofrimento causado por uma doença incurável. Por isso, na sua opinião, não haveria necessidade de despenalizar a eutanásia, que só viria confundir a cabeça dos “não-esclarecidos”. Os “esclarecidos”, esses não precisam da lei para nada, têm a caixa de calmantes e, acrescento eu, sabem que podem ir à Suíça.

Este mês a revista da Ordem dos Médicos do Sul publica uma série de depoimentos sobre eutanásia, mais concretamente 5 depoimentos dos quais apenas o meu é a favor da despenalização. Um deles é de José Pereira de Almeida, vice-Reitor da Católica e vice-presidente da comissão de ética da ARS de Lisboa e Vale do Tejo. Entre várias considerações destaco uma: “colaborar na morte do outro pode querer dizer que a vida não tem mais sentido, pode querer dizer que, de algum modo, também se quer a morte para si”. Portanto, para o vice-Reitor, um médico que aceite ajudar um doente em sofrimento e que pede para antecipar a morte, esconde ele próprio a vontade de morrer.

salta à vista a ideia basilar da elite conservadora: eu sei o que é melhor para ti e sei-o melhor do que tu! Por isso, as leis têm que ser proibitivas e moralizadoras, caso contrário “os outros”, os “não-esclarecidos” certamente vão entrar numa espiral de loucura libertária

Em ambos os casos, salta à vista a ideia basilar da elite conservadora: eu sei o que é melhor para ti e sei-o melhor do que tu! Por isso, as leis têm que ser proibitivas e moralizadoras, caso contrário “os outros”, os “não-esclarecidos”, os que “desejam morrer e nem o sabem” certamente vão entrar numa espiral de loucura libertária e o país acaba numa verdadeira sodoma ou gomorra. Desenganem-se se acham que é apenas devoção religiosa ou beatice. Não é, é mesmo esta conceção de que apenas eles são os verdadeiros detentores da razão e da lucidez e que todos os outros são pobres coitados, vulneráveis, influenciáveis, despidos de verdadeira autonomia. E para controlar essa maioria de povo à deriva, estão cá os verdadeiros cruzados pela moral, pelos bons costumes, pela decência... para os outros, porque para eles há sempre a Suíça ou uma caixa de calmantes, tal como no passado existia Badajoz e a clínica dos Arcos.

Subjacente e indissociável de tudo isto está o conceito de classe. A estratificação e a diferenciação para com “os de baixo” é fundamental: é o que lhes permite manter o privilégio de determinar as regras e influenciar o poder. A elite conservadora, em sentido lato, não perdeu essa posição de privilégio, continua a povoar conselhos de administração de grandes bancos, a direção de instituições do Estado e, neste caso em particular, a controlar a Ordem dos Médicos. Mas tem perdido sucessivas batalhas no chamado “campo dos costumes” e nas políticas de saúde pública. E isso faz mossa.

Não espanta que uma parte do campo conservador esteja hoje seduzido pelo discurso populista da extrema-direita e engrosse as suas fileiras. Afinal, são quem mais agressivamente defende e promove o seu discurso moral e conservador, ao mesmo tempo que protege ativamente a sua acumulação material e o seu papel privilegiado à frente das instituições financeiras, com um programa político ultra-neoliberal. Mesmo que venha atolado em ódio e violência. Mesmo que venha disfarçado de combate às elites, sabendo que as elites são eles mesmos.

Esta semana, a Associação de Médicos Católicos convidou Jaime Nogueira Pinto, o eterno amante de Salazar e conselheiro e amigo pessoal de André Ventura, para uma iniciativa conjunta. Estão todos em casa! E deixam à porta todos os restantes médicos católicos que não veem o mundo com os olhos de um inquisidor do século XVI e que reconhecem na ciência a evidência de políticas públicas de saúde que melhoraram a vidas de todas e de todos.

O futuro reserva aos conservadores uma surpresa desagradável: a demografia! Tenho percorrido as várias escolas de Medicina do país para discutir alguns dos temas sobre os quais milito: discriminação LGBTI+, despenalização das drogas, eutanásia. E tenho encontrado jovens estudantes muito ativos e dinâmicos, com vontade de encontrar soluções para o nosso futuro e com uma visão democrática da liberdade e da nossa vida coletiva. A Associação Nacional de Estudantes de Medicina publicou um guia contra a discriminação nos cuidados de saúde, referenciando o racismo, o sexismo e a homofobia, algo que a Ordem nunca ousou fazer. Há 2 anos realizou-se o primeiro encontro sobre saúde LGBTI+ em Portugal, organizado fundamentalmente por jovens médicos. O ano passado estive num encontro internacional de estudantes, cuja temática era “cuidados de saúde para todos”, com painéis sobre imigrantes, LGBTI+, mulheres, entre outros. Os médicos estão a mudar, pelas suas gerações mais novas. E essa é a tragédia da elite conservadora que tem dominado as suas estruturas dirigentes: têm os dias contados! Em pouco menos de uma geração, esboroar-se-á este eterno mantra de que estamos fartos: “eu sei o que é melhor para ti e sei-o melhor do que tu!”.

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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