Está aqui

Traduzir é trair, anotar é limitar?

A nossa própria interpretação de uma grande obra, a nossa voz crítica, é o instrumento pedagógico que existe e não pode ser substituído.

Não há porventura campo cultural que tenha sido mais intensamente bombardeado nos últimos anos do que o da crítica ao racismo. Há para tanto várias razões, todas poderosas. O racismo, a forma mais expressiva da necropolítica, é um pilar histórico do discurso e das práticas antidemocráticas nos Estados Unidos, onde começam todas as narrativas da direita dos dias de hoje, e enfrentá-lo mobiliza a defesa dos preconceitos situacionistas, como ocorreria contra poucos outros movimentos de direitos cívicos. Depois, a reivindicação de mando que é enunciada pelo desprezo racista contra outros constitui um refúgio para a ilusão tranquilizante de poder de muitas pessoas que estão em baixo na escala social e que vivem ressentidas com a indiferença a que são sujeitas, sendo usada como um instrumento de hegemonia social pelas classes dominantes. Assim, o racismo constitui um modo de agressão fácil que mobiliza muitas vítimas de um universo fragmentado. Tanto basta para que seja reproduzido como uma linguagem dos nossos dias e não só como uma nostalgia de impérios perdidos.

O problema é que, face ao racismo, o reconhecimento do sofrimento e da discriminação exige vozes autónomas, estratégias continuadas, alianças e uma política para vencer — e nem sempre essa força tem sido conjugada. Talvez um dos terrenos em que seja mais difícil seja o da cultura. Dois debates recentes, um em Portugal e outro na Europa, demonstram algumas das dificuldades deste processo de crítica à voz dominante e de apresentação da voz dos dominados.

Anotar e corrigir?

Causou polémica a proposta de uma investigadora académica que sugeriu que o livro de Eça “Os Maias”, uma obra fundamental da língua portuguesa e que faz parte da lista de leituras para o ensino secundário (a sua retirada chegou a ser considerada em 2018, mas as autoridades recuaram), devia ser anotado para apontar e criticar passagens que teriam um viés supremacista. Vanusa Lima, cabo-verdiana, que é estudante de doutoramento em estudos luso-afro-brasileiros na Universidade de Massachusetts, sublinha cuidadosamente que “Os Maias” é “uma das maiores obras de arte da cultura portuguesa”, defendendo que devia ser feito na sua edição um “comentário pedagógico”, não especificando como, sobre a representação daquela elite social que trata os povos africanos como incivilizados e a subjugação colonial como a sua bênção. Vejamos de que se trata com dois trechos sobre a escravatura, um dos quais é por ela citado, ambos sobre as opiniões de João da Ega.

No capítulo XII, ficamos a saber que “Ega declarou muito decididamente ao Sr. Sousa Neto que era pela escravatura. Os desconfortos da vida, segundo ele, tinham começado com a libertação dos negros. Só podia ser seriamente obedecido quem era seriamente temido... Por isso ninguém agora lograva ter os seus sapatos bem envernizados, o seu arroz bem cozido, a sua escada bem lavada, desde que não tinha criados pretos em quem fosse lícito dar vergastadas... Só houvera duas civilizações em que o homem conseguira viver com razoável comodidade: a civilização romana e a civilização especial dos plantadores de Nova Orleães. Porquê? Porque numa e noutra existira a escravatura absoluta, a sério, com o direito de morte!” Sousa Neto, perturbado, pergunta a Ega se não acredita no progresso. Ega, “entalando de vez em quando o monóculo no olho”, diz-lhe que não.

No outro episódio, no capítulo XV, é o Conde de Gouvarinho que explica a João da Ega que a escravatura já acabou: “Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colónias todas as coisas belas, todas as coisas grandes estão feitas. Libertaram-se já os escravos; deu-se-lhes já uma suficiente moral cristã; organizaram-se já os serviços aduaneiros... Enfim, o melhor está feito. Em todo o caso há ainda detalhes interessantes a terminar... Por exemplo, em Luanda... Menciono isto apenas como um pormenor, um retoque mais de progresso a dar. Em Luanda, precisava-se bem de um teatro normal, como elemento civilizador!”

Noutras passagens, o escritor volta à situação dos negros, pondo na boca dos seus personagens o desprezo pela imitação de hábitos europeus ou outros comentários. Mas o que é que isto prova sobre o romance, sobre a atitude do autor ou, ainda mais, sobre o efeito que o texto terá em quem o lê? Estas passagens e outras são, evidentemente, a descrição de contradições da sociedade portuguesa e da sua elite, como vistas por um escritor que dela fazia parte na década de 1880. Fá-lo, como sempre, com graça e até iluminando o absurdo do reacionarismo de Ega. Que comentário deveria então ser acrescentado? Se a proposta é que o livro seja prefaciado, incluindo com um estudo sobre o romance e o seu significado, essa é uma escolha editorial corriqueira. Se a ideia é apensar uma nota interpretativa de cada passagem, isso tomaria quem a lê por uma pessoa diminuída. Além do mais, seria empreendimento impossível: como se fixa uma interpretação legítima? Mudaria o sistema de anotações consoante a inclinação cultural de cada momento? Ora, se muitos dos livros das nossas prateleiras têm notas, pois dificilmente se leria a “Divina Comédia” sem essas referências contextuais, não se trata de discussões do significado cultural dos trechos, pois essa é a liberdade de quem lê. A nossa própria interpretação de uma grande obra, a nossa voz crítica, é o instrumento pedagógico que existe e não pode ser substituído.

Traduzir e trair?

Um segundo debate tem sido mais amargo e é sobre a tradução do poderoso poema que Amanda Gorman leu na cerimónia da tomada de posse de Biden e Harris. O caso é conhecido, uma editora holandesa convidou para a tarefa Marieke Rijneveld, de 29 anos, a mais jovem vencedora do International Booker Prize, no ano passado. A editora indica que Gorman concordou com a indicação, afinal é uma escritora de grande mérito. No entanto, uma jornalista holandesa, negra, criticou a seleção, afirmando que Rijneveld poderia traduzir Gorman, mas não este poema, pois, sendo branca, lhe escaparia o ritmo e o significado do texto. A editora retirou o convite, acrescentando ignominiosamente que, sendo Rijneveld uma pessoa “não binária”, teria esperado anuência quanto à escolha do seu nome, como se as suas escolhas pessoais fossem relevantes para traduzir este poema. E o incêndio estava lançado.

Uma parte do movimento negro apoiou esta rejeição da tradutora e a própria Gorman, ao que parece, aceitou a decisão. Na sequência, Victor Obiol, um tradutor de Shakespeare que tinha sido contratado para fazer a versão catalã, foi desconvidado. “Se não posso traduzir uma poeta por ser mulher, jovem, negra e americana do século XXI, também não posso traduzir Homero por não ser um grego do século VIII antes de Cristo”, queixou-se ele. Os seus defensores reforçaram o argumento, perguntando se Simone de Beauvoir não poderia ser traduzida por um homem, Amos Oz por quem não seja judeu ou Shakespeare por quem não tenha vivido entre o século XVI e XVII. Do outro lado, o argumento é que há uma oralidade e um ritmo das comunidades negras norte-americanas que é o centro do poema, e será assim. No entanto, traduttore, traditore, sendo sempre a tradução uma traição, no sentido em que coloca as palavras e os significados numa língua em que não foram concebidos, a reprodução da experiência pessoal da autora é inatingível e o que se pode alcançar é a intermediação por uma tradução que compreenda e respeite a cultura que informa aquele texto. É por isso que se pode traduzir Dante, Shakespeare ou Amos Oz.

Assim, se a mimetização da própria autora é impossível, a interpretação pela tradução é o que é realizável. Por isso, afirmar que uma experiência de vida transmitida por um enérgico poema é intraduzível senão pela própria, e portanto inapropriável por outras pessoas, seria desistir da comunicação. Esse é o problema da autenticidade da voz: se a identidade for uma cápsula de particularidades de uma história única, não é reconhecível pelos outros; como, pelo contrário, deve ser ouvida como uma voz, uma experiência e um sentido, deve ser sempre traduzida. O poema de Gorman e o combate ao racismo morreriam se não comunicassem.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 9 de abril de 2021

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
(...)