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Trabalhar uma vida, receber pela metade

Durante a governação das Direitas no tempo da Troika (2011-2014), a conversa sobre a insustentabilidade da Segurança Social era sempre o mote para dar mais um passo em frente na sua privatização ou “plafonamento”. Esse argumento neoliberal ressurgiu, pasme-se, pela boca do PS.

O pacote de medidas de combate à inflação que o Governo apresentou no início do mês de setembro tem sido contestado por todos os partidos à exceção do Partido Socialista - que sustenta isolado o executivo de António Costa. A par da crítica mais ou menos consensual sobre a insuficiência dos vários apoios apresentados dada a elevada taxa de inflação já atingida (9% em agosto passado), a medida que mais debate suscitou foi a relativa às pensões. O tema é mais ideológico do que contabilístico, estão em cima da mesa dois grandes modelos de sistema de pensões.

Num sistema que nos tem obrigado a viver saltando de emprego em emprego, entre o estágio mal pago e o desemprego, da emigração ao voluntariado como escape, resta pouco tempo à geração mais nova para projetar o seu futuro a médio prazo, quanto mais a longo prazo. Contudo, as alterações que o atual Governo está a preparar alteram substancialmente a fórmula de cálculo das reformas e, consequentemente, o valor que cada um de nós receberá quando se reformar. Em 2024, os atuais pensionistas e os que, até então, se reformarem, já serão atingidos com uma perda de poder de compra devido à não atualização do valor da reforma que o Governo, entre os pingos da chuva, promoverá.

O tema é sério porque se tornou um problema eminentemente intergeracional. Segundo os cálculos apresentados num canal televisivo nacional, os portugueses na casa dos 30, quando se reformarem, receberão em média metade da reforma a que tinham direito, se se aplicarem as alterações que o Governo está agora a implementar. Trabalharemos uma vida inteira para receber, no fim de contas, por metade desse esforço e dedicação.

Em Portugal, vigora, desde a Revolução dos Cravos (1974) e da subsequente aprovação da Constituição (1976), um sistema de pensões público com características singulares no atual panorama europeu. A pressão que tem existido desde os Governos de Cavaco Silva (1985-1995) para uma privatização parcelar do sistema de pensões conta com o lobby de grandes interesses privados na área dos fundos de pensões e da banca internacional.

Durante a governação das Direitas no tempo da Troika (2011-2014), a conversa sobre a insustentabilidade da Segurança Social era sempre o mote para dar mais um passo em frente na sua privatização ou “plafonamento” (termo utilizado para dividir os descontos dos trabalhadores entre o sistema privados e um fundo de pensões privado). Esse argumento neoliberal ressurgiu outra vez, pasme-se, pela boca do Partido Socialista, que havia enterrado essa falácia da insustentabilidade aquando da assinatura dos acordos da “Geringonça” em 2015.

Nada impede que a Segurança Social e, em particular o sistema de pensões, conheçam capitalizações públicas por meio de receitas que o Estado obtenha

É inegável que há desafios demográficos que obrigam a pensar formas de capitalização da Segurança Social a médio prazo. Mas nada impede que a Segurança Social e, em particular o sistema de pensões, conheçam capitalizações públicas por meio de receitas que o Estado obtenha, por exemplo, se garantir também o controlo público de setores estratégicos da economia - hoje, quase todos privatizados a preço de saldo.

Mas, regressando ao tema das pensões, porque é que o modelo português ainda é o modelo, comparativamente com outros países europeus ditos avançados, mais fidedigno para os trabalhadores de hoje, reformados amanhã? Em primeiro lugar, porque a sua constituição maioritariamente pública (o peso dos PPR e fundos de pensões é reduzido) permite uma maior defesa da estabilização do valor da pensão futura. A título de exemplo comparativo: em países como Itália, Alemanha, Eslováquia e Estónia, o valor não está definido a priori, mesmo que a carreira contributiva seja grande e a média salarial também, ou seja, a prestação de reforma que cada trabalhador receberá no futuro está sempre dependente dos resultados mais ou menos positivos que os ativos financeiros investidos tiverem. Em suma, dependem do “mercado”.

Outro dado importante é a diferença existente entre o último salário auferido e a reforma. Em Portugal, pode ser 25% menor, mas na Alemanha (p. ex.) chega a atingir metade. Não faltam casos na Alemanha onde um trabalhador que ganha, em média, 3000€ brutos mensais, receberá de reforma 1500€. Em Portugal, a diferença é substancialmente menor. O que torna as pensões no nosso país baixas está diretamente relacionada com uma economia de salários baixos.

Em jeito de conclusão, os desafios do futuro são grandes e colocam problemas em vários sistemas de pensões um pouco por toda a Europa, por diferentes razões. A par dos problemas demográficos que são estruturais e cujo cenário tende a piorar, as taxas de desemprego altas nos últimos anos são um real problema para os descontos (ou falta deles) seja para essas pessoas em particular seja para um sistema que funciona na base da solidariedade intergeracional - os nossos descontos servem para pagar as reformas de hoje e, quando nos aposentarmos, a geração seguinte participará nessa ajuda coletiva e solidária para termos a última etapa da nossa vida com dignidade.

Temos duas tarefas históricas nas nossas mãos. A primeira é resistir à pressão da privatização do sistema, que nos atiraria para um modelo onde uma nova crise financeira mundial produziria uma perda incalculável na nossa futura reforma. Para nós, jovens, que com menos de trinta anos, já assistimos a uma crise do capitalismo a nível mundial (2008), com efeitos que perduram até hoje nas nossas vidas, uma pandemia, um surto inflacionário como não havia memória, a probabilidade da crise do sistema se tornar o seu normal funcionamento é um dado quase adquirido. A segunda é combater a cultura de baixos salários que nos corta as pernas e nos impede de ter um futuro melhor. Redistribuir é a palavra de ordem na sociedade contemporânea europeia que forma cada vez mais trabalhadores especializados e altamente competentes mas não se incomoda com o aumento da sua exploração salarial enquanto os lucros das empresas disparam como nunca. Se a vida são dois dias, então não aceitemos que o segundo seja a receber pela metade.

Artigo publicado originalmente em Revista “Europa Hoje” - FLUL, a 29 de setembro de 2022

Sobre o/a autor(a)

Museólogo. Investigador no Centro de Estudos Transdisciplinares “Cultura, Espaço e Memória”, Universidade do Porto
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