Fará este mês de novembro exatos 11 anos desde que milhares de homens e mulheres das forças de segurança interna se concentraram em frente à Assembleia da República porque não aguentavam mais cortes, mais desconsideração e desrespeito pela sua condição, pela sua profissão.
A angústia, a frustração, a revolta, levou centenas de agentes, inspetores e militares a subir a escadaria do parlamento. Do que era nome essa raiva que levou a essa forma inesperada de protesto? O que fez membros das forças e serviços de segurança recorrer a uma forma de ação direta que tantas vezes são chamados a impedir?
Oito anos mais tarde, o largo em frente ao Palácio de S.Bento parece novamente demasiado pequeno. Milhares de polícias e militares vêm de todo o país. O protesto arrasta-se ao longo de horas. O país espanta-se novamente. O que fez esta onda de homens e mulheres sair de casa?
Os anos passam, e por eles passam também os governos da direita, os governos do PS, vários ministros da tutela, mas a fonte que alimenta o sentimento de injustiça não seca. Invariavelmente as formas de protesto somam-se e radicalizam-se. Porquê? Porque o Estado trata mal as forças e serviços de segurança.
Um agente que comece hoje a sua carreira vai auferir 908,77 euros de remuneração base, a que acrescem 100 euros de subsídio de risco, 181,75 euros de suplemento de risco, 181,75 euros de suplemento de serviço e 114 de subsídio de alimentação. Falamos de 967, 71 euros líquidos. Passados uns anos o ordenado pode subir mais com o acréscimo de 113 euros de suplemento de turno e 43 euros caso tenha feito uma patrulha.
O salário é tão baixo que muitos agentes juntam à sua carga laboral - 36 horas semanais que, como é sabido, são constantemente violadas - serviços gratificados. Fazem segurança em entidades bancárias, obras, supermercados, e em tantos outros sítios para o salário esticar até ao fim do mês. Abdicam do seu tempo para viver, do direito ao descanso, para terem acesso ao que a sua remuneração base devia garantir: dignidade.
Quando acabam o curso, os agentes são colocados na Área Metropolitana de Lisboa, onde o preço da casa atinge o dobro do salário. São obrigados a partilhar quartos como os estudantes. Indiferente à crise da habitação, a direção nacional da PSP entendeu que devia aumentar os preços do alojamento nas instalações da PSP. O custo de uma cama numa camarata aumentou até 230%, uma cama num quarto partilhado até 65%, uma cama num quarto individual até 38%.
Não se estranhe depois o abandono, as vagas vazias nos concursos, e o gradual envelhecimento do efetivo. Praticamente metade do efetivo da PSP tem mais de 45 anos. Há zonas do país em que a maioria tem mais de 50 anos.
Em vez de reconhecer o problema e resolvê-lo, sucessivos governos têm optado de forma injusta bloquear o acesso à pré-reforma aos 55 anos de idade e 36 de serviço, tornando o estatuto da PSP em letra morta.
A República e a sociedade exige de tudo e cada vez mais às forças de segurança. São a expressão do monopólio da violência que cabe ao Estado, não poucas vezes o único vislumbre da sua presença em territórios que praticamente abandonou, a quem cabe intervir quando tudo o resto falhou, ou para que nada falhe. Confrontam-se com a manifestação de praticamente todas as formas de violência, as consequências diretas da desigualdade agressiva que marca a sociedade portuguesa e a distribuição desigual de poder.
Somos dos países mais seguros do mundo, mas inseguro para as milhares de vítimas de violência de género, com as quais as polícias contactam, que encaminham e que têm o dever de proteger. Somos dos países mais seguros do mundo, mas com sérios problemas de transgressão das regras rodoviárias, com os quais os polícias têm de lidar diariamente. Somos dos países mais seguros do mundo, mas que assiste à complexificação do fenómeno da burla, a que cabe a agentes e militares responder.
Muitos destes autos são registados e processados, muito do trabalho de polícia e de guarda, é feito em esquadras e postos que não reúnem condições mínimas de trabalho e conforto.
A pressão sobre as mulheres e homens das forças de segurança, a falta de condições materiais e remuneratórias tem efeitos desastrosos. Os casos de burnout multiplicam-se. Há mais polícias a morrer de suicídio do que em funções, muitos mais. A taxa de suicídios na PSP e GNR quase duplicou nas últimas duas décadas. A taxa de suicídios é mesmo maior em termos relativos que a que se verifica no resto da população. É uma catástrofe.
A polícia tem vários problemas, a sua instituição é também reflexo das formas de exclusão e disfuncionalidades da sociedade portuguesa, nem podia ser de outra forma. Nenhum dos desafios que temos de atender se resolve, no entanto, se não tratarmos os homens e as mulheres da PSP e GNR com respeito e dignidade.
O Estado de Direito Democrático tem de tratar bem os seus servidores. A democracia é uma construção complexa que depende da confiança e mobilização dos seus cidadãos. Trabalhar para o Estado não pode ser só suor e farda. Tem de ser salário justo, dignidade, respeito e tempo para viver.
Esteve, por isso, mal o anterior Governo do PS ao comprar um conflito prolongado e inútil com as forças de segurança, alimentando o ressentimento e abrindo espaço ao oportunismo populista. Esteve, por isso, mal o sr. primeiro-ministro Luís Montenegro, ao dizer que não acrescentava nem mais um cêntimo à proposta de suplemento, sob risco de "trazer de volta a instabilidade financeira" para responder ao "interesse particular" de alguns.
Chegar a acordo com professores, oficiais de justiça, profissionais de saúde e forças de segurança é um fator de estabilidade, essencial à saúde da nossa democracia. É justiça. Era bom que a elite governante o percebesse, em vez de convocar fantasmas.
A missão de ser da PSP ou da GNR não é fácil, o Estado não a pode tornar mais difícil. O Governo tem o dever constitucional de lhes garantir nível de rendimento adequado às suas funções e ao direito a uma vida digna.
Intervenção no debate da Assembleia da República sobre forças de segurança, 4 de julho de 2024.
