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Trabalhar até aos 80 anos, ou o conto do vigário

Esta ideia de aumentar a idade da reforma procura reverter uma conquista civilizacional. O objetivo é trabalhar mais para viver menos tempo com uma pensão.

Houve quem notasse que o recente estudo sobre a Segurança Social, patrocinado pela Fundação Manuel dos Santos, tem um mensageiro que é o retrato do problema: a Jerónimo Martins é campeã de salários baixos (exceto ao seu presidente, que em cada mês ganha dez anos de salário médio da empresa), mas o relatório regista o risco de falta de receitas contributivas no futuro. Notar essa contradição não basta, no entanto, para tratar do problema, pois há mesmo um problema. Como todos os estudos verificam, há um risco demográfico: se as migrações não compensarem a redução da natalidade, e era necessário que o fizessem, o aumento da esperança média de vida vai alterando o equilíbrio geracional que ainda permite superavit na Segurança Social portuguesa.

Há um problema, mas as soluções podem ir por caminhos diferentes. Assim, os autores do estudo não podem ficar ofendidos por ser notado que as suas soluções, aumentar a idade da reforma para os 69 anos, baixar o valor das pensões ou entregar parte do pecúlio aos fundos privados, segundo o modelo sueco, seguem a cartilha liberal: ou se trabalha mais, ou se recebe menos, ou se joga a pensão no casino. E isto só tem dado maus resultados. Entretanto, Cavaco Silva veio radicalizar uma destas ideias, sugerindo que se poderia chegar no futuro a trabalhar até aos 80 anos. O curioso é que este gosto pelo abismo está a ser apresentado como uma “reforma da segurança social”, excluindo aliás a alternativa óbvia que seria determinar novas formas de financiamento.

Até aos 80 anos, disse?

Depois da revolução industrial do início do século XIX trabalhava-se nos países europeus desde os seis ou oito anos, durante dez a 14 horas por dia e até morrer. Em 1870 continuava-se a trabalhar até morrer mas com limite de horário: em França um trabalhador faria 3430 horas por ano, na Bélgica 3754, em Itália 3290. No início do nosso século, no ano 2000, em França já só se trabalhava 1644 horas, em Itália 1840 e na Bélgica 1770. No nosso tempo o horário de trabalho reduziu-se para metade, não se começa a trabalhar antes dos 16 anos e há direito à pensão de velhice. Ou seja, acompanhamos o aumento da esperança de vida reduzindo o tempo de trabalho, mesmo que haja desigualdades nesse processo: trabalhamos hoje em Portugal em média 1722 horas por ano mas na Alemanha ficam-se pelos 1356. Em todo o caso, por toda a Europa reduzimos o peso do trabalho, entrando mais tarde e reformando-nos antes de morrermos, e diminuindo o horário enquanto somos ativos.

A introdução da idade da reforma foi também uma das formas de limitar o tempo total de trabalho. É verdade que, quando foi estabelecida a regra dos 65 anos, era na presunção cínica de que pouca gente viveria depois dessa idade. Mas criou-se um direito que foi ampliado pelo sucesso do prolongamento da esperança média de vida. A ideia espantosa de aumentar a idade da reforma para os 69 ou para os 80 anos procura reverter essa conquista civilizacional e impor o reconhecimento de que devemos trabalhar mais para viver menos tempo com uma pensão menor.

A bolsa ou a vida

Ora, para empreender esta cruzada contra o progresso civilizacional é preciso algo mais do que topete, é necessário um interesse forte. Aumentar o tempo de trabalho e reduzir os salários reais, usando uma mistura de medidas de congelamento salarial (dez anos na função pública em Portugal), de redução do pagamento por horas extraordinárias e férias, de aumento dos ritmos de trabalho e de uberização e precarização, tornaram-se o mantra da gestão moderna. Esse é o interesse das empresas na gestão da produção. Mas há ainda outro interesse nesta luta civilizacional e é maior.

Esqueçam então a idade da reforma, aumentará em doses discretas para não perturbar as eleições, partindo aliás de normas diferenciadas: é de 60 anos na Coreia do Sul, 61 na Suécia, 65 no Reino Unido, 65 anos e 7 meses na Alemanha, 67 anos na Itália, a caminho dos 67 em Portugal. No entanto, nenhum aumento da idade da reforma resolve o que está em causa na Segurança Social.

O facto é que os 69 ou os 80 anos são espantalhos para assustar. Aqui é que bate o ponto: os sistemas serão adaptados a bem (com novos financiamentos) ou a mal (aumento da idade da reforma e redução das pensões). Mas ao sistema financeiro só interessa mesmo o dinheirinho: como a garantia das suas rendas elevadas exige sempre a ampliação da acumulação, precisa de captar os descontos dos trabalhadores, que são o maior ativo financeiro do mundo que ainda lhe escapa parcialmente. Entregar esses valores aos fundos financeiros é um objetivo que fará girar o mundo e, para tanto, é preciso criar o pânico. A única proposta que nos põem em cima da mesa é então esta: a bolsa ou a vida.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 19 de abril de 2019

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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