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TPC: para quê?

A discussão não é nova e em alguns países até deu azo a que pura e simplesmente se proibissem os “trabalhos para casa”. Aconteceu em França, Espanha e Finlândia. Por cá, os TPC continuam a ser uma rotina diária.

Muitas crianças do primeiro ciclo, ou seja, entre os 6 e os 10 anos, estiveram nas férias da Páscoa a fazer “trabalhos para casa”: exercícios, cópias, composições... de tudo um pouco. Nalguns casos, assinalava o jornal Público que realizou esta investigação, as crianças levaram 28 folhas de fichas para fazer. Os efeitos na dinâmica familiar são essencialmente negativos: os pais e sobretudo as mães (sobre quem continua a recair de forma predominante o acompanhamento dos filhos) falavam de “gritos, reprimendas e cansaço” decorrentes dos TPC.

A discussão não é nova e em alguns países até deu azo a que pura e simplesmente se proibissem os “trabalhos para casa”. Aconteceu em França, aconteceu em Espanha e aconteceu na Finlândia, tida como um modelo do ponto de vista do sistema de ensino e do sucesso escolar. Nesses países, os TPC foram abolidos para as crianças até aos 11 anos.

Por cá, os TPC continuam a ser uma rotina diária. Nas férias, muitos professores carregam ainda mais, com o argumento de que os miúdos não devem “desabituar-se” nem “perder o ritmo de trabalho”, aproveitando a pausa escolar para “consolidar” os conhecimentos. Mas estes argumentos estão a ser cada vez mais contestados. Por várias razões.

A primeira é a sobreocupação do tempo das crianças. Uma investigadora calculou o tempo que as crianças passam na escola, somou-lhes o que muitas passam no ATL a fazer o mesmo tipo de trabalho e chegou a uma conclusão no mínimo inquietante: os miúdos mais novos trabalham cerca de 8 horas diárias, ou seja, “o equivalente ao trabalho profissional de vida de um adulto”. No caso das férias, argumenta a mesma investigadora, esta ocupação do tempo com trabalho escolar é ainda mais questionável: “as férias são para descansar! Se para os adultos que trabalham, férias é não trabalhar, por que seria diferente para as crianças?”. De facto, a conquista de tempo livre para atividades autodeterminadas foi um avanço civilizacional, materializado na consagração das férias pagas ou na redução, ao longo do último século e meio, do horário de trabalho semanal. O prolongamento desse horário é hoje, para os adultos, um problema grave e uma regressão, que retira tempo para viver. Não se aplica o mesmo às crianças?

Uma outra razão para que se questione a utilidade dos TPC é o tipo de tarefas que são prescritas. Na maior parte dos casos, falamos de atividades que mimetizam totalmente o trabalho escolar, mas de forma ainda mais repetitiva: cópias, fichas e exercícios iguais aos que se fazem na aula, como se duplicar e triplicar as mesmas tarefas padronizadas não resultasse, mais do que em aprendizagem, em repulsa. Pior só mesmo as situações em que explicitamente se marcam os TPC como castigo. Aí, a mensagem não podia ser mais perversa: estudar é uma punição, ou seja, o oposto de um prazer ou de uma vontade.

É claro que há quem entenda que os trabalhos de casa são um convite à colaboração entre os pais e a escola. Ao apoiarem os seus filhos nos TPC, os encarregados de educação teriam um pretexto para falar com as crianças sobre as aprendizagens e acompanhar o que se passa. Mas este é porventura o argumento mais discutível. Primeiro, porque os TPC reforçam e reproduzem a desigualdade social. Ao contrário do que acontece na escola, onde as crianças têm acesso aos mesmos livros, materiais e professores, as famílias têm proximidades muito diversas com a cultura escolar – e isso traduz-se no acompanhamento que podem fazer. Além disso, esta lógica deixa várias perguntas por responder. A escola e o tempo das aulas não chegam para se fazerem as aprendizagens necessárias? A relação entre pais e filhos precisa da intermediação do trabalho escolar? O tempo gasto nisso não seria vivido de forma mais interessante a fazer outras coisas em conjunto com os mais velhos: conversar, ouvir música, preparar o jantar, colaborar nas tarefas domésticas e, sobretudo, brincar, que é a atividade mais séria, mais importante e mais educativa que uma criança pode fazer?

De facto, é a própria visão de educação e de infância que está em causa. O que hoje se vive é uma crescente e preocupante “alunização” de toda a experiência das crianças. Isto acontece com os TPC mas também com outras atividades, quando elas são feitas em função do seu contributo para o “sucesso” escolar: vais aprender música porque isso é bom para o teu percurso ou vais fazer uma oficina disto ou daquilo para ganhar “competências” úteis para a escola, etc. É sempre a condição de aluno a sobrepor-se à de criança e o tempo da infância visto como instrumental em relação à instituição escolar. O ofício de aluno ocupa o tempo da escola, mas prolonga-se para o espaço doméstico e coloniza todo o tempo da vida. Há algum educador que, em plena consciência, considere isto saudável?

Artigo publicado em expresso.sapo.pt a 1 de abril de 2016

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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