Está aqui

Todos temos direito a uma casa

Esta legislatura está a chegar ao fim, o Verão segue aos tropeções e as nossas expectativas empurram-nos já para Outubro. Há temas que despertam mais interesse e paixão. O problema da habitação ocupa lugar de destaque.

Há propostas que têm vindo a ser amadurecidas, como na Câmara Municipal de Lisboa, outras muito debatidas como no Bloco e ainda bem, outras caem-nos no colo com cheirinho eleitoralista como a proposta do Ministério das Infraestruturas e ainda há espaço para propostas que do sector privado como da Louvre Properties. Diferentes entre elas, cobrindo necessidades distintas mas com um denominador comum chamado classe média; é indispensável perscrutá-las. As propostas da CML e do Ministério das Infraestruturas, colidiram. O assunto não terá sido discutido no interior do PS, talvez devesse, problema do PS. As duas propostas, alguém se apressou a explicar, são complementares. O valor calculado para as rendas é, na proposta de Medina, ligeiramente mais acessível do que na proposta de Pedro Nuno Santos. Ou seja, ambas se dirigem à classe média ainda que a segmentos distintos. Aqui reside um enorme enigma: que classe média? O que é isso de classe média, quem a integra, quais são os seus limites, como se classifica o seu nível financeiro? A única vantagem ao clarificarem que essa habitação é para a classe média, é ficarmos a saber que não se trata de habitação social. Portanto, temos aqui já dois patamares: num, as pessoas com desesperante carência financeira, ao nível da pobreza, e um outro composto por pessoas que não sofrendo de carência financeira mesmo assim precisa que o Estado construa (ou reabilite ou aproveite ou modernize) casas, intervindo como alternativa ao mercado imobiliário liberal e selvagem, entrando neste jogo de forma a responder a uma importante faixa populacional, defendendo-a. As pessoas individuais ou os casais da classe média, eventualmente, encontrarão nestas alternativas uma resposta. Encontrarão mesmo? Façamos umas contas, tomemos Zulmira como exemplo. A Zulmira aufere 800€/mês líquidos. Em que patamar é que a CMLisboa, ou o Ministério, a colocam? No patamar média média ou média baixa? Tem vivido em casa dos pais, não tem nenhum daqueles equipamentos que uma casa carece desde alguns móveis e máquinas até uns talheres e panelas. Com aquele rendimento, ficará com uma renda pelos 240 €; entre luz, gás, água, internet, passe social para os transportes e lá se vão uns 150 €; depois, a fatia de leão com o supermercado, uma ou outra compra de produtos frescos, alguma farmácia e não pode dispor mais do que 300 € o que exige muita ginástica; os almoços nos dias de trabalho são de marmita, mas alguma socialização e um dinheiro na carteira, tudo a pedir uns 100 €. Se a Zulmira precisar de comprar uma peça de roupa ou quiser cortar o cabelo, se for mês de pagar a licença do software, se tiver de ir ao médico, mudar de óculos ou tiver um problema com os dentes, já era! Então, e a cultura, entrar numa livraria, comprar um livro ou o jornal ao sábado, um cinemita? De que estamos a falar?! Então, os móveis ou outros tarecos para dar algum conforto às quatro paredes?! Nada. Poupar?! Nadica de nada. Como é que os técnicos da CMLisboa ou do Ministério olham para isto? É uma equação difícil, claro, mas não pode ficar sem resposta e as propostas oficiais não resolvem. A percentagem calculada de 30% sobre o rendimento para a renda, não se adequa, é excessiva. Temos de dar a volta a este problema.

A proposta do Bloco de Esquerda tem uma grande vantagem que resulta no facto de considerar dois tipos de renda apoiada. Por um lado, as rendas calculadas para “rendimentos médios” (um conceito por clarificar), ainda são muito altas. Tudo depende do que for considerado “rendimento médio” mas ninguém vai sugerir rendas, por exemplo, de 150 € para rendimentos de 3000 € (seria menos de mais) e, portanto, é mesmo urgente assentar no montante do que é considerado “rendimento médio” e uma vez com esse valor estabelecido, então, será possível estabelecer o valor da renda. A equação começa pelo lado do rendimento e as rendas têm de ser estabelecidas tendo em conta o rendimento concreto das pessoas concretas. Não, não haverá uniformidade, e depois, era obrigatório? A outra face da proposta do Bloco de Esquerda contempla a habitação social. Para a Zulmira, se calhar, esta é a resposta e isso é bom. Habitação social não poder equivaler a gueto, urge acabar com esse fatalismo. Sendo a habitação um direito fundamental, então, as rendas deverão ser proporcionais aos rendimentos.

O Ministério anunciou que vai pegar no antigo Hospital Miguel Bombarda para fazer apartamentos para a dita classe média. Aqui a coisa complica-se. Primeiro, o Hospital fica na Colina de Sant’Ana, havia outros planos para aquele imóvel com interesse histórico e patrimonial. Onde é que meteram o plano?! A proposta do Ministro tem de ser vista à luz do que havia sido estabelecido e embora eu imagine que o Ministro não vá perder tempo com esse escolho, lá teremos de o relembrar e, se for caso disso, de o incomodar… que isto de ser Ministro tem as suas surpresas. Surpresas à parte, a qual classe média é que se destina o projecto de ocupação do Miguel Bombarda? Outra vez a classe média, desta vez mais para cima ou mais para baixo? Temos mesmo de esclarecer estas oscilações.

Como se não bastasse, chegam de mansinho os privados anunciando apartamentos para a classe média como a dita Louvre Properties. Apartamentos no coração de Lisboa, projectados e feitos de novo, a estrear, algumas centenas de milhares de euros, tudo em nome da classe média. Alta, claro, mesmo muito alta. Interessa-nos estabelecer os limites, definir os patamares e saber do que falamos quando fazemos referência à classe média ou a “rendimentos médios”. Necessário para atribuição de habitação e não só; quando tratamos de pensões, reformas e salários, damos de caras com a classe média. É bom estar preparado.

A classe média está na mira de todas estas propostas. A habitação social e a população alvo, bem menos. E a habitação degradadíssima, a precisar de intervenção para responder às necessidades de quem lá habita, continua a ser uma chaga difícil de eliminar.

Sobre o/a autor(a)

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
(...)