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Tirar de comer a quem tem fome

Seis governos - os da Alemanha, do Reino Unido, da Suécia, da Holanda, da Dinamarca e da República Checa - querem reduzir em 75 por cento o montante dedicado ao europeu de assistência alimentar aos mais carenciados e extingui-lo em 2013.

No seu discurso sobre o estado da União, Durão Barroso fez uma declaração de amor incondicional à Europa. A sua Europa: uma União de "de disciplina e solidariedade", uma União a caminho da "confiança e do crescimento". A Europa de que falou é a que, vendendo ilusões, serve frias as decepções. O que se passou nesse dia não poderia ser mais revelador. Horas depois, o Parlamento que escutara Barroso discutiu o programa europeu de assistência alimentar aos mais carenciados. Estamos a falar do principal recurso de sobrevivência para 19 milhões de pessoas. Seis governos - os da Alemanha, do Reino Unido, da Suécia, da Holanda, da Dinamarca e da República Checa - querem reduzir em 75 por cento o montante dedicado a este programa e extingui-lo em 2013.

Este apoio aos mais pobres entre os pobres tem custado a cada europeu exactamente um euro por ano ou, se se quiser, um quinto de cêntimo de euro por dia. Reza a história que este bloqueio absurdo começou porque a França terá usado a sua parte nesta verba para comprar os bens alimentares directamente aos seus agricultores, o que os outros governos, suportados num processo judicial que ainda decorre, consideram "concorrência desleal". Por outras palavras: a Europa não se entende para colocar o programa alimentar em andamento e quem paga são os pobres. É com murros destes no estômago que se afogam as ilusões sobre o estado da União.

Que se clarifiquem as irregularidades, nada contra; mas que este episódio seja usado para acabar com um dos raros fundos de uso social, é vergonhoso. Sabemos que a União tem problemas estruturais - os que estão a acentuar cada vez mais a divisão entre os países do norte e os do sul; mas também sabemos que a pobreza tem aumentado, que as desigualdades se multiplicam e que os mais pobres não podem ficar sem resposta. Este programa usa os excedentes agrícolas em benefício de quem tem fome. É um bom programa e um programa bom. O seu bloqueio só é compreensível à luz de uma sociedade que é capaz de produzir excedentes, mas que não os quer usar decentemente.

Não deixa de ser sintomático que o discurso das ilusões tenha ocorrido no mesmo dia do debate sobre o programa alimentar. Barroso falou da "Europa da disciplina orçamental". Essa existe mesmo. É a que insiste nas medidas de austeridade que aumentam a pobreza e as desigualdades. E falou também da "Europa da solidariedade". Mas essa é a que vive no mundo das palavras e se dispensa de actos. Devia ser ao contrário, não é?

Artigo publicado no jornal “As Beiras”, 1 de Outubro de 2011

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
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