No penúltimo dia do ano foi aprovada, por Decreto-Lei do Governo, uma alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial. Com esta alteração o Governo pretende aumentar o número de solos disponíveis para construção habitacional, facilitando sobremaneira a conversão de solos rústicos em solos urbanos.
Esta alteração ao regime dos solos constitui, não apenas um erro crasso do ponto de vista da política habitacional, como um potencial desastre ecológico e social. Trata-se de uma decisão política completamente alheia às preocupações que vêm sendo manifestadas pela comunidade científica e às orientações técnico-jurídicas europeias e internacionais. Num momento em que começa, finalmente, a reconhecer-se a importância (e a urgência) da preservação da biodiversidade e da regeneração dos solos, esta é uma medida em chocante contracorrente. Os compromissos dos Estados em matéria de restauração e preservação dos solos já seriam difíceis de alcançar no quadro pré-existente, pelo que é incompreensível vir agora admitir-se, inclusive, a urbanização de alguns solos classificados como Reserva Agrícola Nacional e Reserva Ecológica Nacional.
Convém sublinhar, antes de mais, que a distinção, existente na legislação nacional, entre solos rústicos e solos urbanos não é um capricho. A importância da adequada classificação dos solos e do ordenamento do território deveria ser evidente para qualquer pessoa com responsabilidades políticas em Portugal. Com efeito, a desordenada ocupação dos solos tem sido, historicamente, uma das principais causas dos maiores desastres que assolaram o país. Pense-se nas cheias de 1967, que ceifaram a vida a várias centenas de pessoas, residentes em habitações precárias construídas em leito de cheia durante o processo de expansão do perímetro urbano lisboeta resultante do êxodo rural das décadas precedentes. Os estudos realizados sobre aqueles fatídicos dias de novembro de 1967 concluem que as condições estruturais de desordenamento urbano contribuíram para a dimensão da catástrofe, bem como para o aterrador número de mortos. A expansão urbana desenfreada repercutiu-se na impermeabilização dos solos, que, em consequência, estavam inaptos a escoar alguma água das chuvas. Ao que acresce, claro, a construção desalmada em terrenos localizados em zonas de inundação. Nada do que foi dito parece exagerado se pensarmos nas inundações que regularmente voltam a afetar a Grande Lisboa e zonas circundantes. Conclusões idênticas podem, aliás, ser alcançadas a propósito da aluvião na Madeira, em 2010, para cuja dimensão catastrófica concorreram também a construção desordenada e o negligente planeamento urbanístico. Ademais, também as proporções dantescas que têm assumido os incêndios florestais nas últimas décadas não podem ser desligadas da displicente gestão do solo agrícola e florestal, especialmente no interior. Além disso, o caráter disperso e fragmentário das malhas residenciais nas zonas rurais dificulta o combate aos incêndios e a proteção das habitações e das pessoas e animais.
A ocupação dos solos é, portanto, um dos domínios onde é mais evidente a profunda interconexão entre as questões ecológicas e as questões sociais. Além das consequências ao nível da proteção contra intempéries e da correta regulação dos sistemas que geram tais fenómenos, também a disponibilidade de alimento e água está dependente da saúde dos solos. Os solos constituem ecossistemas complexos que nos fornecem inúmeros serviços, todos eles essenciais à vida humana. Por muito que consiga distanciar-se tecnologicamente da natureza, a espécie humana nunca poderá superar a sua condição fundamental de elemento da infinita teia de relações que sustenta toda a vida, humana e não-humana. Se conquistarmos toda a natureza, seremos conquistados com ela, porque dela fazemos parte. A manifestação mais brutal disso é a urgência climática em curso, a qual, aliás, também suscita delicadíssimas questões relacionadas com a sobreocupação dos solos.
Ora, gerando toda esta ampla gama de riscos e efeitos perniciosos (ecológicos e sociais), nada justifica uma política de expansão da urbanização que admite a devastação dos já parcos e empobrecidos solos agrícolas e florestais nacionais. Torna-se, por isso, especialmente perverso justificar este tipo de medidas com base na necessidade – real – de endereçar a crise habitacional, já que o seu potencial para resolver o problema é muitíssimo baixo.
Os instrumentos de gestão territorial em vigor já delimitam espaços urbanos ou urbanizáveis mais do que suficientes. A escassez habitacional nada tem que ver com a falta de solo urbano ou urbanizável, mas antes com outros fatores que continuam a ser ignorados. A admissibilidade de urbanização do solo rústico não vai solucionar o problema de subaproveitamento dos solos urbanos ou urbanizáveis já existentes, nem tão pouco resolver o problema dos prédios indivisos em virtude de dificuldades com a partilha sucessória; e, nos grandes centros urbanos, certamente não irá inverter a tendência de aumento galopante dos preços, provocada pela especulação imobiliária que os dirigentes políticos não querem enfrentar. Em sentido inverso, este tipo de modelo de expansão urbana, desorientado e em estilo de "buffet", tenderá a agravar essa mesma especulação, uma vez que a alteração da classificação dos solos produzirá, como bem se vê, uma inflação generalizada do valor do solo.
O diploma será agora apreciado pela Assembleia da República, restando esperar que, na casa do povo, o interesse superior do povo prevaleça. A alteração aprovada pelo Governo é um atentado ecológico em potência, servido sob o disfarce de política habitacional. O Governo cria, desta forma, a ilusão de que está realmente empenhado em resolver a crise de habitação, sendo que o seu único empenho discernível é o de agravar a crise socioecológica.
Artigo publicado em Sabado a 5 de janeiro de 2025