Teoria da relativização

porMiguel Guedes

10 de novembro 2019 - 13:29
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A teoria da relativização parece querer substituir-se à teoria da relatividade e Albert Einstein pode bem estar a dar voltas no túmulo. As realidades comparativas são hoje tremendas e escapam ao físico alemão.

No tempo e espaço em que se comemoram 100 anos sobre o eclipse que comprovou a sua teoria, o espaço dilata-se para a normalização do fascismo e suavização dos seus protagonistas. É de importância fundamental a preservação da memória e a capacidade para a historiar factualmente a olhos vistos, evitando que o conhecimento seja substituído por fake news ou paninhos quentes.

A criação do Museu da Resistência e Liberdade na cidade do Porto, aspiração de muitas vontades que até já suscitaram uma carta aberta de cidadãos (que subscrevi) defendendo a sua instalação na antiga sede da PIDE (hoje, Museu Militar) em nome da memória da resistência antifascista, reúne consensos. O simbolismo do local não é notícia de realidade alternativa ou aumentada: mais de 7000 resistentes à ditadura foram ali presos ou torturados pela polícia política do Estado Novo. A ideia, aprovada na Assembleia Municipal do Porto e alvo de dois projectos na Assembleia da República (AR) pela mão do Bloco de Esquerda e CDU, é bem acolhida pela ministra da Cultura, Graça Fonseca, em sede de audiência parlamentar. A necessidade de articulação com o Museu do Aljube e o Forte de Peniche permitirá ir de encontro à criação de uma rede nacional dos Museus da Resistência, impossibilitando que se apague a memória. O mais recente voto de recomendação, unânime, por parte do Conselho Municipal de Cultura do Porto, é mais uma manifestação da importância fundamental dessa vontade. Urge avançar, sem mais simbolismos.

Para contrabalançar a indecisão de quem agora foi eleito defendendo o inverso do que advogava na sua tese de doutoramento, podemos contar com o passo em falso de uma Fundação que recomenda a presença de um nazi multicondenado (e sem arrependimentos) num programa da tarde do serviço público de televisão, apelidado de "pai-coragem", não sendo capaz de investigar ou dizer algo sobre o que até estava visivelmente exposto, tatuado na testa ou no domínio público ao alcance de uma pesquisa no Google. "Omertà", então. É desconcertante que o "pai-coragem" agora apoiado, se gabe de ter criado uma associação de solidariedade ("Luz Branca") para ajudar "famílias desfavorecidas só brancas" e "crianças só brancas".

A Fundação Ronald McDonald, certamente com louvável trabalho societário, não é sequer capaz do que seria mais evidente no âmbito familiar: pedir desculpa à família de Alcindo Monteiro, morto quando se dirigia para casa por um bando de criminosos racistas do qual o fascista Nuno Cláudio Cerejeira fazia parte. Limita-se a apagar uma fotografia. Enquanto isso, a Iniciativa Liberal escolhe, para o seu primeiro acto na AR, a urgente comparação entre nazismo e comunismo. A querer fazer história, um partido ainda sem história mas de historiadores com pungente preocupação com a comparação de um passado com quase nove décadas.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 8 de novembro de 2019

Miguel Guedes
Sobre o/a autor(a)

Miguel Guedes

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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