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Tancos à porta

Um simples buraco na rede é, desde há uma semana, a arma de passagem privilegiada para o crime organizado.

Vive-se a culpa, tal como em Pedrógão Grande, pela acção do agressor externo e pela personalização das culpas. Para o fogo não há patentes: atira-se a culpa à trovoada seca ou ao arco voltaico, porque exonerar as matas do eucaliptal é trabalho para presidiários no inverno. E tudo parece uma saga de "fake news". No roubo de Tancos, aponta-se ao crime organizado internacional porque olhar para dentro do buraco da rede é demasiado exigente. Se alguém acreditar que o submundo internacional do tráfico de armamento acerta no maior roubo de material de guerra deste século por um buraco na rede e sem recorrer a detalhada informação interna, belisque-se. Mas só trancar a porta que alguém terá aberto não chega.

É claro que seria um enorme ajuda que tivéssemos sentinelas portadores de G3 com munições. Não para o caso em concreto - tendo em conta que nenhum guardou o Paiol Nacional de Tancos durante cerca de 20 horas a fio - mas para a dignidade geral do coldre. 1450 cartuchos de munição de 9 milímetros, 18 granadas de gás lacrimogéneo, 150 granadas de mão ofensivas, a título de inventário definitivo que se afigura tão temporário como a exoneração dos cinco comandantes pelo chefe do Estado-Maior do Exército, Rovisco Duarte. A lista pode crescer, sob confirmação. Aos responsáveis, não basta assumir responsabilidades políticas que dispararam para baixo na hierarquia: a falta de videovigilância e de guarda física numa zona de armazenamento de armamento de guerra é quase tão ofensiva para a ideia que temos de país como fazerem-nos acreditar que uma rede degradada é condição que propicia assalto.

A relação privilegiada com o mal reside no mal com que se usa o que se tem. Toda esta fragilidade tem um nome: incúria. Está muito para além do desinvestimento, existe pela incapacidade que convoca o desleixo. É nem querer. Fala-se agora de voltarmos à segurança que existia nos anos 80: mais dois militares nas secções de vigia, uma força de reforço para casos de emergência, redobrada atenção aos paióis pelas rondas dos regimentos e armas desseladas para uso pronto. A Procuradoria Geral da República abriu inquérito e há quem adiante ligação de alguns sectores militares a grupos extremistas. Mais uma vez, a questão assenta muito mais em perceber como é possível que o país funcione sem uma rede mínima de pensamento em alguns sectores estratégicos. Nada disto se resolve com investimento. Com mais investimentos mas sem coerência, continuaremos na lógica do fogo posto, à procura do furo na rede e dos bodes expiatórios, com Tancos à porta.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 5 de julho de 2017

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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