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As surpresas do programa eleitoral do PSD

Não se pode ter tudo, gastar mais e cobrar menos. É preciso fazer escolhas. O PSD não parece querer dizer o que prefere, mas isso é demasiado sério.

Houve um momento curioso no final do debate Rio-Costa. Quando perguntado sobre alterações climáticas, Rio retorquiu que a questão é demasiado séria para que nela haja divergências partidárias. Ficou-me a dúvida: será que só sobram diferenças nas questões menos sérias, o que tornaria o debate eleitoral vagamente inútil, e que a política é um mar de consensos sobre as outras questões, as importantes, o que também tornaria irrelevantes os debates? O programa eleitoral do PSD, com o que seria previsível e com as surpresas que encerra, demonstra que esta aparente convergência é show off. Tem mesmo ideias fortes e outras novas e boas, embora as fortes sejam problemáticas, as novas nem sempre sejam boas e as boas só sejam novas para o PSD.

A primeira surpresa: reestruturar a dívida pública

A primeira medida do PSD que pode surpreender o país é a de uma reestruturação profunda da dívida portuguesa, através da mutualização europeia de títulos até 60% do PIB, entre outras propostas. A sugestão do Manifesto dos 74, de 2014, assinada entre outras pessoas por Manuela Ferreira Leite e vários ex-ministros do PSD e CDS, além de personalidades de centro e esquerda, era distinta, propunha a mutualização da parte da dívida acima desse rácio de 60%. Em todo o caso, o que Rio agora defende é que, com a emissão de eurobonds, títulos de dívida europeia, a União fique responsável por cerca de 120 mil milhões da dívida pública portuguesa (e a mesma percentagem para os outros Estados).

A ideia é interessante e já tem sido discutida desde há muitos anos, aliás sempre com a oposição frontal do PSD e, o que é mais significativo, com a rejeição terminante das autoridades europeias e do governo alemão, que é o mais-que-tudo. A última vez que o conceito foi vagamente aflorado foi por Macron na sua campanha eleitoral, mas desde então nunca mais se ouviu falar disto. Com a rejeição de instrumentos de dívida europeia e com as regras impostas pelo Tratado Orçamental, este modelo de reestruturação da dívida é hoje uma piedosa boa vontade. Estamos mais longe do que jamais estivemos de uma qualquer política europeia de redução da dívida, os países mais endividados rezam para que o BCE não lhes tire o tapete e o tempo vai passando com restrições orçamentais que agravam os perigos recessivos.

A segunda surpresa: financiar as pensões

A segunda novidade, e essa confesso que não esperava, é o apoio à proposta da CGTP (e também do Bloco de Esquerda e do PCP, com modalidades específicas) de alargar o financiamento da Segurança Social a todo o valor acrescentado das empresas. O salário já paga, como se sabe, mas os lucros não. Ora, tem sido colocado o seguinte problema: é injusto que empresas que criam muito emprego paguem proporcionalmente mais para a Segurança Social do que por exemplo as empresas financeiras, que captam grandes lucros com menos trabalhadores e, portanto, pouco financiam o sistema de pensões.

Propõe então o PSD, como a esquerda sempre fez (e o PSD sempre recusou), que a contribuição para a Segurança Social seja proporcional ao valor acrescentado líquido, incluindo assim a tributação sobre os lucros, na parte não reinvestida. Isso aumentaria a contribuição patronal e diversificaria as fontes de financiamento, tudo bons passos para a sustentabilidade da Segurança Social, se se mantivessem taxas razoáveis de contribuição.

Até agora, não registei qualquer comentário das associações empresariais sobre esta proposta. A não ser talvez o seu empenho na maioria absoluta do PS, que lhes promete não deixar passar este tipo de medidas e, bem pelo contrário, tem até vasto currículo na ideia da redução da contribuição patronal (em 2015 prometia reduzir €2900 milhões na TSU paga pelas empresas, o que teve que abandonar em função do acordo com o BE, mas voltou a fazer novo acordo com as associações patronais nesse mesmo sentido, de que depois teve que desistir mais uma vez).

A terceira surpresa: as cadeiras vazias no Parlamento

Neste caso, não é bem uma surpresa, dado que Rio já o tinha anunciado com clareza, embora como uma sugestão: a “valorização dos votos brancos”. A formulação é estranha, apresenta-se mesmo de modo a que ninguém a compreenda, mas o líder do PSD já explicou: consoante o número de votos brancos, ficariam vazios mais ou menos lugares de deputados. Teríamos assim os “deputados-fantasmas”, que não votam, aliás não existem, mas cujos lugares representariam não se sabe o quê. Parece que isto é uma “reforma do sistema político”.

A confirmação: contas de envelope para os impostos

Vem então a parte forte do programa, o seu cenário macroeconómico e a redução de impostos. Com alguma bonomia, o PSD procura inverter o desconforto de 2015, quando foi acusado de não apresentar contas por um PS que divulgava detalhadas projeções. Agora partido de Governo, o PS esconde as suas contas, o pouco que revelou deveu-se a pressão do Expresso, aliás demonstrando que não tem dinheiro nem para os prometidos aumentos da função pública nem para o seu programa de habitação. E o PSD vangloria-se de fazer o que recusou em 2015, sinais dos tempos.

O problema é que o cenário do PSD é um simulacro duvidoso. Rio explicou-o candidamente: se tivermos mais €15 mil milhões em receita pública até 2023, uma parte vai para despesa corrente, 3,7 mil milhões de euros vão para baixa de impostos e €3,6 mil milhões para aumento do investimento público. Ora, este mundo não existe, pois o PSD não pode prometer tudo e o seu contrário. Primeiro problema: o aumento da receita pública decorrente do aumento do PIB não está livre de riscos. Assim, o PSD prevê uma aceleração do crescimento, o que é uma esplêndida homenagem a Centeno, mas nada indica que isso se vá passar. O risco é exatamente o contrário, tanto pelas tensões no comércio internacional, pela recessão na Alemanha e Reino Unido, como pelo preço do petróleo com a tensão entre o Irão, Arábia Saudita e EUA. Portanto, não há €15 mil milhões.

Em segundo lugar, à medida que o PIB cresce, mesmo que ligeiramente, sobem as despesas correntes com salários e pensões, são precisos mais especialistas médicos e enfermeiros, são precisos medicamentos mais caros. Essa despesa terá que aumentar, a não ser que o PSD queira manter congelados os salários e fechar urgências hospitalares. E depois há a ferrovia e os metropolitanos para recuperar, a habitação para reabilitar e outros investimentos. Pensar que isso se faz com mais 0,3% do PIB por ano é uma quimera. O plano de investimento do PSD é vazio.

Em terceiro lugar, é fácil prometer baixar os impostos, sobretudo depois do tal colossal aumento de €2 mil milhões no IRS, do qual só metade foi devolvido. Ora, se o PSD prometesse restituir o que retirou quando governou, a verba referida por Rio ficaria a zero. Portanto, não se pode ter tudo, gastar mais e cobrar menos. É preciso fazer escolhas. O PSD não parece querer dizer o que prefere, mas isso é demasiado sério.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 21 de setembro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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