A retórica dos fogos ganhou este ano um novo apontamento vigoroso, o supremo valor da propriedade face à protecção da vida humana. É inquestionável que a defesa das casas, bens e haveres é obrigação de todos e, naturalmente, incumbência maior de todas as forças no terreno. Não se pode, de resto, ignorar ou diminuir o conhecimento de pessoas, anónimas, que saberão acrescentar algo mais ao plano estrutural de combate aos fogos e à organização dos meios no terreno. Se tempo houvesse. Terá havido excessos. Mas independentemente do desastre de Pedrógão e da falta de confiança dos cidadãos na capacidade do Estado, é espantoso ver tantas pessoas a valorizar mais a vida humana em feto (contra a interrupção voluntária da gravidez) ou a vida desumana em sofrimento atroz (contra a eutanásia), do que a vida de quem teima, por natural desespero, em ficar sozinha em casa a defender a sua propriedade para, possivelmente, nela morrer. A falta de confiança neste Estado não o extingue pelo fogo.
Os especialistas em incêndios viveram uma relação de amor e ódio com o indomável fogo de Monchique. Afinidade com a cotação do bitaite a subir, dias a fio, ao nível das altas temperaturas e com o estigma da comparação com o passado recente de Pedrógão, como se dente por dente fosse lume por lume, como se dois fogos houvesse que se sintetizassem num só, à vista desarmada, por apropriação de identidade ou fogo de vista. É chocante a nossa incapacidade em fazer frente ao que todos os anos parece ser inevitável, hectares e hectares de terra ardida sob os olhares-faísca de gente desesperada ou em pânico, uma imensa tristeza que se abate e galopa como certa, inferno de luz, na sua direcção. Tudo o que sabemos porque temos memória. Mas não podemos escurecer à sua luz: a memória de Pedrógão não nos autoriza ao descaramento de olhar para Monchique lendo sucessos ou insucessos pelos números do desastre, à comparação. Continuamos a olhar para trás para não ver o que está à ilharga.
António Costa congratulou-se pelo facto de ninguém ter morrido em Monchique mas esteve mal ao puxar pela comparação gratuita com Pedrógão. Friendly-fire. A ponte Morandi em Génova foi construída com betão leve nos anos 60 e vinha com um prazo: durabilidade máxima de 30 anos. Contavam-se cerca de 20 pontes como esta em todo o Mundo. Todas elas foram demolidas e reconstruídas. Todas, excepto a que ontem caiu, vitimando dezenas de pessoas. O caso único, a única comparação que faz sentido.
Artigo publicado no Jornal de Notícias, 15/8/2018