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Sobre o que há-de vir

A eleição de Donald Trump apanhou meio mundo impreparado porque esse meio mundo não pensou pela sua própria cabeça, desatou a pensar pela cabeça dos outros.

O privilégio da incerteza é a certeza de que nada é imutável mesmo quando tantas pessoas teimam em querer construir algo de imediato para as suas vidas. Ou quando insistem tempo infinito na construção de algo que tenderá sempre à destruição. Nessas condições, a ideia de futuro não tem qualquer charme. Não há qualquer hipótese de acorrentar o futuro inapelavelmente, como se o pudéssemos amarrar pela tendência. Não sendo o que for será, o futuro está longe de ter um destino traçado. Continua refém da convicção de que vale a pena debater pelas ideias e que esse trabalho é o único que assegura alguma sustentação ou uma ideia de permanência. Sem esse trabalho, nada. Saber em liberdade é o maior garante de que estamos preparados para o que há-de vir.

Não estamos preparados para tudo, como se o nosso relógio fosse o relógio do Mundo. Não é. A eleição de Donald Trump apanhou meio mundo impreparado porque esse meio mundo não pensou pela sua própria cabeça, desatou a pensar pela cabeça dos outros. Pensou que os outros não seriam capazes, que não haveria força suficiente do lado errado da história, que não haveria tanta gente capaz de eleger um carácter racista, misógino e impreparado para presidente dos EUA. Mas há. Ele estava mais do que preparado e contou com a nossa impreparação. A Trump chamemos os nomes que entendermos (ele tens ofensas suficientes para troca) mas não assistamos incrédulos ao que está para vir. O caminho de quatro anos para Sanders ou Michelle está condenado ao fracasso se a democracia se continuar a recusar a debater ideias no topo da sua superioridade moral. Será um caixão por encomenda.

O perigo de contágio já passou à história. É da História. O agradecimento de Trump à trupe de extremistas paga-se em nomeações para a Casa Branca e os primeiros sorrisos vêm da extrema-direita europeia e da oligarquia russa. Ao escolher o anti-semita Steve Bannon como principal estratega e conselheiro, Trump caminha para o seu ponto de rebuçado hormonal: nada como premiar alguém que dirigia um site onde escrevia "Preferia que a sua filha tivesse cancro ou feminismo?". Bannon não é presidente dos psicólogos católicos, tem apenas um grau diferente de perigosidade à escala. Se a opção da democracia insistir em candidatos como Hillary Clinton, oriundos do sistema das mãos queimadas e com a empatia de uma amiba, a Europa vai rever a sua história recente já em 2017.

Uma América forte e boa. Há notícias da morte que ainda nos elevam, iluminando o que de melhor as pessoas têm. Sobretudo aquelas, como Leonard Cohen, que pretendem viver para sempre. Poucos descreveram tão bem a perfeição. Cohen escreveu sobre ela e às tantas encarnava-a, confundia-se com ela. Em 1970, dizia que os EUA eram uma enorme nação mas ainda fraca. Ainda muito fraca. Precisava de se tornar muito mais forte antes de poder reclamar direito à terra. Vamos ter saudades.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 16 de novembro de 2016

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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