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Soares, a guerra não acabou
A coragem e o carácter fizeram de Mário Soares um lutador ímpar e a figura mais carismática, proeminente e decisiva do Portugal democrático. Incomparável. Divisor de opiniões pela convicção das suas ideias e da sua natureza política, assumiu as suas frentes e contradições sem esconderijos, sem querer fintar-se nos pingos da chuva. Alguém que poderia informar a portugalidade e os nossos traços identitários caso tivéssemos crescido à sua altura. Uma vida cheia. À distância pelo seu trajecto, combate, firmeza e bonomia, como Portugal seria outro se pudéssemos ter todos um pouco mais dele.
Crescia miúdo quando na escola fiz campanha por Soares, longe ainda de poder votar. Era ele o ícone da simpatia na campanha presidencial de 86 em que enfrentou Freitas do Amaral, "fixe" para o povo com sol amarelão sorridente em autocolantes, calendário de bolso com fita métrica para as ocasiões, imagem sorridente na rosa que despontava rosa a seguir ao cravo. Era ainda a liberdade a não querer deixar de bater à porta, 12 anos depois. Nunca votei Soares, nunca o apoiei. Estivemos inclusivamente em campanhas contrárias e corridas paralelas mas, apesar das ideias distintas, nunca me senti a correr contra ele. Soares pode ter fechado com cadeado o que quisermos que ele tenha metido na gaveta, mas até ao fim da vida foi ele que sempre nos abriu as portas da casa. Não sei qual é o lado certo da história. Mas eu, que nunca apoiei ou votei Soares, faço parte do coro dos agradecidos.
Soares deu-nos lições de democracia até ao nosso último momento com ele. E foram de enorme grandeza. O homem que guiou o caminho português para a União Europeia foi o mesmo que soube reconhecer o abismo para que caminha o projecto de que foi pai de família. E como deve ser dura essa admissão. Nos derradeiros traços e fundamentos, lembremos a sua oposição à guerra no Iraque, à troika e ao vandalismo financeiro.
Há algo, porém, em que Soares se enganou redondamente: não é só a luta que continua mas também a guerra que não acaba. Acusado de ser o timoneiro de um processo de descolonização que lesou milhares de portugueses, lemos e ouvimos gente capaz de dizer o indescritível, espumados pela vingança numa morte que só lamentam não ser deles. Dizem-nos que mais confortável do que a morte era que vivesse uma vida em dor. Com todo os respeito pelo seu sofrimento, há gente que não recupera nem percebe que é do regime dos algozes - Salazar e Caetano - a responsabilidade pelos despojos de uma guerra de 13 anos que acaba sem soldados que queiram lutar. Se a guerra acabou, acabou já tarde, deixando muitos atalhos de fascismo que voltam. Não é a um homem de liberdade que devem pedir contas para reclamar trocos ou ajustar o resgate de uma vida. Mário Soares. É mais do que uma luta porque a guerra continua. Façamos agora a nossa parte.
Artigo publicado no Jornal de Notícias, 11/1/2017
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