Só não vê (a RTP) quem não quer

porRafael Pereira

21 de outubro 2024 - 21:44
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O que o Governo pretende até 2027 é eliminar a vertente competitiva da RTP, abdicando da produção de conteúdo da RTP como hoje conhecemos para que os dois outros canais generalistas (SIC e TVI) possam absorver as audiências, as receitas e a sua posição comercial.

No já habitual estilo deste governo, foi apresentado no dia 8 deste mês de Outubro o chamado Plano de Ação para a Comunicação Social que - entre outras coisas - prevê a criação de condições ótimas para a dissolução da RTP enquanto canal de televisão e empresa de comunicação social. Isto não é um pessimismo distópico, é uma premonição de um futuro não muito longínquo caso o Plano garanta condições de existência política.

Numa leitura detalhada ao plano, algumas palavras e medidas anunciadas parecem fazer sentido, nomeadamente a construção de um Código para a Comunicação Social, reunindo toda a legislação avulsa sobre estas matérias e adaptando-as para conseguirem responder aos novos desafios do ramo (digitalização e fake news). Até mesmo todo o estilo discursivo que fala em “inovação”, “visão integrada, holística e de uso simplificado”, “futuro”, “combate à desinformação” e a aquisição de 100% do capital da Agência Lusa parecem ser opções políticas razoáveis e defensáveis.

A boa-fé deste plano começa a desvanecer nas páginas dedicadas à visão estratégica da RTP. A partir desse ponto (o segundo eixo de todo o plano) revelam-se as verdadeiras ambições do governo social-democrata e dos seus amigos mais abastados. Em linhas gerais: diminuir as fontes de receita do canal público acabando com os anúncios comerciais até 2027, reorganizar a composição da equipa pensando em 250 “saídas voluntárias”, abrir mão de uma visão comercial típica e forçar o funcionamento da RTP a um serviço público genérico. Assim, o que se pretende até 2027 é eliminar a vertente competitiva da RTP, abdicando da produção de conteúdo da RTP como hoje conhecemos para que os dois outros canais generalistas (SIC e TVI) possam absorver as audiências, as receitas e a sua posição comercial.

Se a notícia foi recebida com muito agrado dos CEOs dos órgãos de comunicação privados, não se esperou a mesma reação da Direção da RTP nem da própria Associação Portuguesa de Anunciantes, que vêem este plano como um plano destrutivo e altamente inflamatório. A RTP enquanto órgão de comunicação social pública, é dos menos financiados da União Europeia juntamente com os congéneres da Europa do Sul e de Leste e mesmo assim consegue oferecer uma panóplia de serviços, produtos e conteúdos de extrema qualidade e variedade.

o plano do Governo é mais um embuste que não serve a mais ninguém senão aos grandes grupos económicos

Considerando tudo isto, o plano do Governo é mais um embuste que não serve a mais ninguém senão aos grandes grupos económicos. Por um lado, a RTP cede obrigatoriamente a sua posição competitiva de audiências e reduz o seu papel enquanto produtor de conteúdo, mesmo numa altura em que se sabe que as receitas e lucros da RTP foram de dois milhões e meio de euros em 2023. Por outro lado, os espaços para anúncios que serão cedidos ao resto dos OCS serão danosos para os próprios anunciantes e muito lucrativos para os grupos SIC/Impresa e Media Capital, no sentido em que os canais privados não terão capacidade de absorver mais nos seus blocos publicitários, o que irá inflacionar invariavelmente os custos dos anúncios no horário nobre.

Na rede social Linkedin, Francisco Pinto Balsemão diz que “será o mercado a ditar o destino dos €22M que esta medida [dissolução de anúncios na RTP até 2027] libertará”, mas sabe ele e todos nós perfeitamente que isso significa a longo prazo uma maior receita para os grupos privados. É assim que sefazem os grandes negócios em Portugal, à custa de serviços públicos tão importantes para os portugueses. A responsabilidade de qualquer governo de manter a RTP como um marco histórico e social é indispensável e irrevogável, é por isso inconcebível abrirmos agora mão da gestão comercial de um OCS público. Confiar unicamente nos serviços privados para garantir o acesso à informação, ao entretenimento e à promoção de valores essenciais para cada cidadão residente em Portugal é um erro que sairá muito caro a todos nós.

Não esquecemos que é responsabilidade da RTP a maioria da produção documental do país, não esquecemos a densidade do arquivo da RTP que possibilita um acesso gratuito e fácil a qualquer tipo de conteúdo da nossa história, não esquecemos o papel fulcral que teve a RTP durante a pandemia com a TeleEscola que possibilitou (e ainda possibilita) que todas as crianças deste país tivessem acesso a aulas didáticas transmitidas na televisão. Não esquecemos ainda o destaque que a RTP garante a todos os meios de cultura e desporto e a total disponibilização sem qualquer barreira de subscrição ao serviço RTP Play onde se encontra tudo o que foi elencado neste parágrafo e muito mais.

O serviço público de televisão e rádio é tão basilar na nossa democracia como outro qualquer pilar

O serviço público de televisão e rádio é tão basilar na nossa democracia como outro qualquer pilar (como o SNS e a escola pública) e descurar este serviço com políticas que enchem de entusiasmo os detentores de OCS’s privados não só é um erro político crasso, como um insulto a todos os portugueses. Espera-se mais e melhor de quem governa e espera-se uma inquietação de todos nós para que este plano maléfico de destruir a RTP não se concretize.

Rafael Pereira
Sobre o/a autor(a)

Rafael Pereira

Estudante de sociologia deslocado para Coimbra e ativista interseccional
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