Historicamente bastiões da esquerda, como o distrito de Beja (Alentejo) e várias freguesias rurais, votaram maioritariamente no Chega nas legislativas de 2025. Em Beja, o Chega liderou com aproximadamente 27 % dos votos, superando PS e AD, que ficaram ambos abaixo dos 24 %. No Norte rural (ex-freguesias rurais a Norte do Tejo), apesar de o PS ter tido vantagem em 2022, a queda em 2025 também foi significativa. A AD liderou na maioria dos concelhos, enquanto o Chega cresceu em influência, sobretudo entre eleitores rurais mais jovens. Em Itália, localidades rurais do norte como Salizzole votaram quase 50 % pela Brothers of Italy em 2022, graças à retórica anti-imigração e perceções de declínio económico local.[1] Em países como Alemanha, Áustria, Hungria, Itália e Suécia, partidos de extrema-direita, euro cépticos ou anti-establishment ganharam terreno em zonas rurais. Por exemplo, na Alemanha, o AfD alcançou cerca de 32 % dos votos na região rural de Görlitz, alimentando-se da sensação de abandono por Berlim e Bruxelas. O livro bestseller de J.D.Vance, vice-presidente norte-americano, “Lamento de uma América em ruínas” é uma autobiografia de uma família dos montes de Appalachea, de uma zona ressentida política e economicamente, minada pela crise de opioides. A narrativa que ressoou de forma tão expressiva torna visíveis os mesmos cidadãos que Hillary Clinton denominou de “deploráveis” em 2016 enquanto era candidata às presidenciais. Numa entrevista feita ao órgão de comunicação NPR, Vance argumentou: “Há um componente étnico latente na minha história. Na nossa sociedade consciente da questão racial, o nosso vocabulário muitas vezes não vai além da cor da pele de alguém — pessoas negras, asiáticas, privilégio branco. Por vezes, estas categorias amplas são úteis. Mas, para compreender a minha história, é preciso aprofundar os detalhes. Posso ser branco, mas não me identifico com os WASPs [brancos anglo-saxónicos e protestantes, a elite social dos EUA] do Nordeste. Em vez disso, identifico-me com os milhões de norte‑americanos brancos da classe trabalhadora, de ascendência escocesa‑irlandesa, que não têm diploma universitário. Para estas pessoas, a pobreza é a tradição da família. Os seus antepassados foram trabalhadores diaristas na economia escravocrata do Sul, meeiros depois disso, mineiros de carvão a seguir, e mais recentemente maquinistas e operários fabris. Os americanos chamam-lhes hillbillies, rednecks ou white trash [termos depreciativos usados nos EUA para se referir a brancos pobres do meio rural, especialmente do Sul e dos Apalaches]. Eu chamo-lhes vizinhos, amigos e família”.
Segundo uma investigação divulgada pelo Público realizada a partir de uma sondagem à boca das urnas em 2022, o crescimento da direita radical nos espaços rurais não se explica necessariamente pela concentração significativamente maior de valores tradicionalistas/nacionalistas , nem por sentimentos maiores de privação financeira, mas sim por uma percepção crescente e generalizada de negligência política.[2]
A transformação
Nem sempre foi assim. Durante a década de 1930 a 1960 havia um voto rural progressista associado ao New Deal de Franklin D. Roosevelt. Nesta mesma altura, o Partido Democrata norte-americano era dominante em muitos condados rurais do Midwest e Sul pobre. Em França, regiões agrícolas do Sudoeste, como Ariège, Lot-et-Garonne, votavam massivamente no Partido Comunista Francês (PCF) até aos anos 80, vindo essa força das vivacidade que tinham estas casas do povo, cooperativas e sindicatos agrícolas. Durante estas épocas o espaço rural era marcado pelo conflito laboral organizado, haviam lideranças locais e o discurso político era concreto, focando-se muitas vezes na questão da propriedade da terra.
A partir dos anos 80 e 90 houve uma transformação profunda na economia do mundo ocidental. Em Portugal, por exemplo, a entrada na Comunidade Económica Europeia trouxe a Política Agrícola Comum (PAC), que contava com incentivos europeus que favoreceram explorações maiores e mais mecanizadas e a reconversão de culturas, o que tornou a competição impossível para muitos pequenos e médios agricultores. Com a automação e a aposta no setor dos serviços e da indústria ligeira o êxodo rural tornou-se uma realidade muito evidente.
Estas mudanças levaram a que o novo eleitorado dos partidos de esquerda e sociais-democratas se tenha passado a centrar nas classes médias urbanas, trabalhadores do setor público e jovens escolarizados das cidades. O recuo organizativo no território, resultado do modo como as populações se foram redistribuindo no território (fecho de sedes, menos protagonistas oriundos de espaços rurais), a mudança de prioridades programáticas (um discurso marcado mais pela abstração como a política climática que foi entendida em muitos territórios como adversa à ruralidade, criando muita crispação social- política), um certo elitismo (as populações do campo são muitas vezes apresentadas como atrasadas, conservadoras e pouco progressistas), bem como uma maior mediatização das campanhas políticas.
Com o êxodo rural e o abandono destes territórios estas populações foram-se tornando mais permeáveis ao discurso da direita radical que as torna visíveis e as empoderou (aparentemente) enquanto agentes da transformação social. E assim roubou uma dimensão significativa da classe trabalhadora.
É preciso voltar a permanecer
Há esforços que mostram que é possível recuperar e voltar a construir alternativas com os nossos concidadãos que têm sido abandonados, só pelo azar do seu código postal. Nos EUA, candidatos democratas que reconquistaram condados rurais (Minnesota, Wisconsin) visitaram pessoalmente todas as feiras, mercados e cooperativas durante meses. É preciso pensar de que forma se pode voltar a ter uma presença permanente espalhado no território, numa altura de refluxo financeiro, social e político da esquerda. O debate sobre a política climática pode ser um espaço para esta recuperação- é preciso juntar forças para pensar em como se pode construir com agricultores e pastores uma política verde, que não seja um imposição “de cima” de natureza tecnocrática e autoritária. É preciso imaginar como se pode valorizar a identidade local sem a deixar ser tomada pela guerra cultural da direita que quer fazer equivaler todo o tradicionalismo com a política xenófoba e desigual.
Há um campo de disputa popular. E há uma insistência popular em romper a tecnocracia que tem dominado as nossas democracias, para tornar a vida digna mesmo que isso implique tornar o impossível possível. Calcemos as galochas, não poderemos evitar a lama.
Artigo publicado originalmente em Anticapitalista #82 – Setembro 2025