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Serralves, o doce perfume da censura

A censura implica que alguém, o estado, a igreja, ou a direção da Fundação Serralves, escolha por nós, por isso é incompatível com a sociedade democrática, por isso não é aceitável.

Robert Mapplethorpe é um dos grandes nomes da História da Fotografia. As suas imagens, a maioria, são polémicas, nudez, sexo, às vezes bizarro. São essas imagens que o tornam importante e polémico. São estética e tecnicamente extraordinárias, mas de certa forma clássicas. É a temática sexual, geralmente homossexual, a brutalidade e crueza de algumas que as tornam importantes e lhes abrem lugar nos museus e coleções de arte contemporânea pelo mundo fora. As últimas que vi foi na Tate Modern, em Londres, um dos museus importantes e mais visitados do mundo.

O seu ambiente cultural é o de Nova Iorque dos anos 70/80, o mesmo de Patty Smith (e é de Mapplethorpe a imagem que todos conhecemos de Patty Smith) ou dos Talking Heads. Faleceu cedo, de Sida, em 1986, o seu percurso artístico é bastante curto.

Além de retratos e das imagens mais sexuais, também fotografou, flores, estátuas. Pode dizer-se que estas são tão ou mais eróticas que as outras. Esta exposição de Serralves é uma grande exposição, mas não a primeira realizada em Portugal. Nos anos 80 e 90 houve trabalhos seus expostos na “Módulo -Diferença” e nos efémeros “Encontros de Fotografia de Lisboa”, mas estava-se no circuito mais alternativo, não despertaram polémica.

As tentativas de censura foram muitas, claro, às vezes com sucesso. Não foi só Mapplethorpe a vítima, outros fotógrafos trabalhando com corpos nus sofreram o mesmo. Sally Mann fotografava os seus filhos, Jock Sturges fotografava pessoas em campos de naturismo. Estes trabalhos têm uma carga erótica mais pequena que a maioria dos anúncios de detergentes, mas, mesmo assim, foram alvos de censura e até de acusações criminais, com a acusação de pornografia infantil. Um novo puritanismo se instala. É curioso que há muitas fotografias de crianças nuas na fotografia oitocentista, porque se considerava que os corpos infantis não tinham carga erótica.

Tradicionalmente a sociedade judaico cristã lida mal com o corpo, com o sexo, com o prazer que são culpabilizados, que são considerados pecado. A maçã, a serpente, Adão e Eva, continuam presentes. A maçã encerrava o pecado e o conhecimento. Hipocritamente o sexo serve para vender. Não só é uma indústria por si, a pornografia movimentará algo como 10.000.000.000 [dez mil milhões] de dólares ano nos Estados Unidos, o que é tanto como as indústrias do Cinema, Música e Desporto juntas, como é um ingrediente importante para as vendas de muitos (todos?) os outros produtos. A sociedade da imagem do início do século XX é altamente erotizada.

Há uma situação que é pouco clara neste episódio de Serralves, as 20 fotografias que eram para estar e não estão. Foi uma escolha do curador, ou um primeiro ato de censura? Outra interrogação: A direção da Fundação de Serralves não sabia do que se tratava?

Esta situação faz lembrar o passado com Saramago e Sousa Lara ou Herman José e a RTP, ou um cartaz do Bloco que humanizava um Cristo com dois pais (aí não era possível censurar). Por isso é importante não deixar passar este ato, por isso é importante censurar esta censura. Os museus não são uma entidade neutra. Refletem a história, as relações de poder, os passados coloniais, peças egípcias e gregas em Paris ou Londres. Refletem também o puritanismo: Afrodite pode nascer nua e adulta, porque está num contexto mitológico, já as estátuas renascentistas foram frequentemente castradas. A censura implica que alguém, o estado, a igreja, ou a direção da Fundação Serralves, escolha por nós, por isso é incompatível com a sociedade democrática, por isso não é aceitável.

Ironia das ironias. A censura será a melhor das publicidades, esperam-se enchentes em Serralves, mas quem vai ver a exposição de Mapplethorpe são os que não aceitam a censura. É esse o sentido desta obra transgressora, polémica e (muitas vezes) chocante.

Sobre o/a autor(a)

Investigador de CIES/IUL
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