Seremos capazes de viver sem cultura?

porAlexandra Vieira

02 de julho 2020 - 21:48
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A pandemia tornou visível que não é possível cumprir as obrigações do Estado com a cultura com orçamentos mínimos, quase residuais, ou assente no princípio da transversalidade, colocando a cultura submissa aos interesses do turismo, por exemplo.

A produção e fruição da cultura como condição humana remonta aos primórdios da civilização. Resultou sempre de um determinado nível de desenvolvimento, supridas as necessidades básicas como a alimentação, abrigo e defesa, a possibilidade de, numa sociedade, um conjunto dos seus membros poder dedicar-se à produção de arte e de bens culturais. Resulta de uma abundância que permite que nem todos os membros se dediquem à produção de alimentos ou à defesa da comunidade. O que se produz já é suficiente para que outros se dediquem a outras atividades.

A arte e a cultura ocorrem em homenagem às dádivas da Mãe-Natureza, que presenteia as comunidades humana com alimentação abundante; em honra das entidades divinas, que assim favoreceriam as colheitas. Ocorrem também como expressão de poder, como homenagem aos mortos e como divertimento de multidões. As manifestações artísticas são também como formas de interpretar o mundo e de tornar visíveis outras maneiras de pensar, e são essenciais na construção de identidade individual e coletiva e no sentido de pertença.

Podem ser olhadas sob esta perspetiva as pinturas de Lascaux e de Altamira, as gravuras do Vale do Côa, a cultura megalítica, entre outros exemplos, para situar a atividade cultural como muito anterior à própria invenção da escrita.

Assim, a produção de bens artísticos resulta do facto de outros se dedicarem a outras atividades para que quem os produz, possa subsistir. É entendida como uma atividade, e excetuando momentos de servidão, de escravatura ou de mecenas, sejam elas príncipes ou reis, papas ou burgueses. Viver da arte é possível, embora esta esteja sempre sujeita a flutuações decorrentes do próprio dinamismo económico da comunidade.

duas ideias emergem: uma que é a da resiliência artística, apesar da crise económica; a outra é da necessidade do usufruto da arte de cultura por parte das sociedades que acabam sempre por a procurar, mesmo nas alturas de sobrevivência mais difícil

Desde sempre, quando há dificuldades económicas, os primeiros reflexos fazem-se sentir na produção artística, sendo também a última a recuperar. Nesse sentido, duas ideias emergem: uma que é a da resiliência artística, apesar da crise económica; a outra é da necessidade do usufruto da arte de cultura por parte das sociedades que acabam sempre por a procurar, mesmo nas alturas de sobrevivência mais difícil.

As lógicas do apoio às artes, por sua vez, variam ao longo das épocas e dos regimes políticos. No caso de Portugal do pós-25 de Abril, o princípio, à medida que a normalidade democrática se instala, é a do subsídio, colocando sempre os agentes culturais numa longa fila de espera e de chapéu na mão, ou num burocrático processo concursal, ou na lógica da “perninha” na televisão ou na publicidade, ou no grau ou menor da popularidade de uma ator ou atriz ou grupo ou banda que, só por si, esgota bilheteiras. Em períodos mais neoliberais e de retrocesso do Estado social, a ideia de dependência do subsídio é fortemente criticada, colocando a produção artística ao nível da concorrência entre atividades industriais: dá lucro, sobrevive, não dá lucro, desaparece.

Afinal, a produção artística não terá mudado muito desde a Pré-História até aos dias de hoje: depende do bem-estar económico e social de uma comunidade ou dos interesses políticos de um determinado regime, que torna viável que alguns dos seus membros, e respetivas famílias, daí retirem o seu sustento.

Nos últimos anos, e um pouco por todo o mundo dito civilizado, a produção artística e cultural tem dependido da sua capacidade de produzir valor para um mercado, na perspetiva de que tem de ser capaz de se autossustentar - afirma-se - , sendo por isso, frequentemente, acusada de ser subsídio-dependente, de modo linear, sem que haja a real compreensão dos contextos diversos da produção criativa, artística e cultural.

Ora, foi preciso uma pandemia como a causada pelo Covid 19 para se perceber e tornar evidente, sem margens para dúvidas, que, por um lado, as pessoas precisam de cultura para viver, sobretudo nas alturas em que a sua resiliência é posta à prova; por outro, a atividade cultural, na sua multiplicidade e diversidade ocupa largos milhares de pessoas e de famílias que dedicam a sua vida a tornar melhor a nossa existência, em múltiplas dimensões e formas de expressão artística.

O desconhecimento do como é composto o setor, no seu caráter caleidoscópio e de entrecruzamento com outras áreas de atividades, a noção de que há uma parte pública substancial na atividade cultural que tem de ser garantida, quer pela questão da preservação, registo e memória, que exige trabalho técnico especializado e espaços especialmente concebidos para o efeito, quer no financiamento de outras manifestações que só podem ser públicas, quer por serem projetos de vanguarda, quer por serem grandes estruturas, coloca o Estado como primeiro financiador, ou, melhor dizendo, primeiro investidor.

A consciencialização de que este setor ocupa milhares de trabalhadores, na sua maioria precários e a recibos verdes com “um único cliente”, intermitentes, sem direitos laborais. Outra mudança de perceção significativa é a de que a lógica concursal encerra perversidades e injustiças a grassar a irresponsabilidade pública e enferma sempre do mesmo mal: o subfinanciamento, o atraso crónico, o de colocar todo o tipo de estruturas no mesmo patamar, incluindo centros culturais municipais.

A pandemia tornou também visível que não é possível cumprir as obrigações do Estado com a cultura com orçamentos mínimos, quase residuais, ou assente no princípio da transversalidade, colocando a cultura submissa aos interesses do turismo, por exemplo. Convém lembrar que a atividade cultural também paga impostos e que as receita das bilheterias revertem 23%, só em IVA, e que emprega milhares de pessoas, que em situação laboral com direitos, estariam a fazer os seus descontos para a Segurança Social.

O próprio Estado não pode eximir-se da sua responsabilidade de apoio, financiamento, investimento na arte e na cultura, sobretudo das entidades independentes de criação e difusão artísticas, espalhadas pelo território, nas mais diversas áreas. É a Direção Geral das Artes o mecanismo principal público para assegurar o cumprimento do preceito inscrito na Constituição da República Portuguesa na qual a Cultura é um direito fundamental.

Artigo publicado em Plataforma Media a 30 de junho de 2020

Alexandra Vieira
Sobre o/a autor(a)

Alexandra Vieira

Professora de História e Sociologia da Educação. Dirigente do Bloco de Esquerda
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