A sociedade atual convive com uma série de situações injustas e discriminatórias, sendo até algumas consideradas aceitáveis pela população em geral por serem vistas como práticas habituais. São, contudo, atentatórias dos nossos direitos - individuais e coletivos - e, por isso, inaceitáveis.
Centremos a questão na exigência de apresentação do registo criminal para um sem número de situações da vida quotidiana e vejamos como esta exigência consubstancia, não raras vezes, laivos de punitivismo e repressão, ainda que escamoteados.
Os casos em que a apresentação do registo criminal é legalmente exigível, bem como as pessoas ou entidades que o podem requerer e aceder às informações nele vertidas, sempre com uma finalidade estrita do tratamento de informações, estão taxativamente inscritos na lei (Art°. 8°, nº 2 da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio). Concorde-se ou não com aquela listagem, não são esses casos os que encerram a análise e preocupação aqui trazidas.
Com efeito, não é compreensível - e não deve aceitar-se, muito menos apenas por se tratar de “prática habitual” - que num simples processo de recrutamento e seleção para um emprego não previsto naquele rol, juntamente com o curriculum vitae, a fotocópia do documento de identificação, o comprovativo de morada, diplomas e afins, seja também exigida a entrega do registo criminal.
Em virtude da especificidade e/ou do conteúdo funcional, o acesso e o exercício de determinadas profissões estão condicionados à verificação de certos requisitos essenciais, sejam eles de cariz técnico, psicoafectivo ou deontológico. Nestas situações, os critérios que presidem à seleção dos candidatos são objeto de escrutínio adicional por parte dos empregadores. Contudo, importa assinalar que tais exigências já estão – e bem – consagradas na lei.
Quando estamos perante antecedentes criminais registados significa que: i) a pessoa em causa cometeu um crime; ii) foi julgada e condenada pela prática do mesmo; iii) cumpriu a respetiva pena, de prisão ou de multa. Cabe salientar que o registo criminal manterá tais informações por prazos diferentes, consoante o tipo de ilícito criminal praticado ou da moldura penal que lhe subjaz.
Ora, o cumprimento da pena, seja ela qual for e durante o tempo que for, reconduz a pessoa à condição inicial e natural de cidadão/cidadã, titular de todos os seus direitos, incluindo o direito ao esquecimento (do seu passado) e o direito ao trabalho.
Posto isto, como se prevê, então, à luz de um princípio de reinserção social, que alguém com antecedentes criminais, ou seja, que haja cumprido a pena, sinta que é possível concorrer a um emprego, quando a apresentação do seu registo criminal resultará, certamente, numa exclusão liminar daquela candidatura? Sentir-se-á duplamente “julgada” pelos mesmos atos ilícitos, agora fora da esfera judicial. E mesmo que haja, em concreto, outras razões objetivas para a não contratação, será improvável que, na prática, a existência do registo criminal “ainda sujo” não seja a maior causa daquele efeito.
Do ponto de vista jurídico, a ideia de que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime (non bis in idem) é um princípio de Direito Constitucional Penal e um direito subjetivo fundamental plasmado no nº 5 do Artº. 29º da Constituição da República Portuguesa. Se, à luz dele, os tribunais estão impedidos de julgar alguém mais do que uma vez pelo mesmo crime, não se aponta legitimidade a uma empresa que, extravasando a legalidade, cria obstáculos à reinserção laboral de quem tem direito à mesma, por meio de um “duplo julgamento” dos atos outrora cometidos.
Se a própria lei fundamental da nossa democracia preconiza os princípios de reparação e reintegração, não podemos continuar a permitir que “práticas habituais” se sobreponham e, com isso, configurem uma sociedade baseada numa cultura punitivista, que hipervalora as falhas e as perpetua.
Várias perguntas se impõem, cujas respostas não serão lineares tampouco consensuais, mas há que as procurar. Queremos uma sociedade justa e (re)integradora? Ou punitivista e repressora, dentro e fora do espectro legal? A maioria das respostas (idealmente, seriam todas!) tenderá pela primeira hipótese, mas então por que mantemos um paradigma de sociedade duplamente penalizadora das falhas cometidas e já “pagas”? Será mesmo necessário apresentar o registo criminal para alguém conseguir um emprego? Não será a exigência do registo criminal um mecanismo que dificulta a reinserção social de quem a busca? As respostas podem não ser simples, e as soluções dependem, entre outras coisas, de vontade política para, pelo menos, encetar um debate aprofundado sobre o assunto.
Se sabemos que a sociedade que queremos é justa e reintegradora, lutemos por ela.
