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A segunda vaga já chegou

Vemos ajustes de contas em muitas empresas, milhares de despedimentos, chantagem sobre trabalhadores precários, cortes de salários, falências anunciadas.

Um milhão de pessoas infetadas e vai subir, Trump admite que possam ser mais de 200 mil mortes nos EUA, hospitais no limite em Espanha e em Itália, a primeira vaga ainda vai a caminho e é tremenda, mesmo em Portugal já fez tantas vítimas que não se pode fechar os olhos. Mas a segunda vaga também já começou entre nós: um ajuste de contas em muitas empresas, milhares de despedimentos, chantagem sobre trabalhadores precários, cortes de salários, falências anunciadas. Dois perigos podem agravar essa tempestade: complacência dos governos e demissão europeia.

Tolerar o caos?

Suponho que ainda haverá quem argumente, à Bolsonaro, que o confinamento é um exagero e que a emergência é dispensável. Apesar dessa armadilha, com o passar dos dias torna-se evidente que foi necessário reduzir drasticamente os contactos comunitários, e portanto fechar escolas e alterar o ano letivo, encerrar lojas e limitar deslocações, reuniões, manifestações ou atos de culto, tal como é preciso requisitar instalações, capacidade produtiva e hospitalar ou pessoal técnico e controlar preços. Nada disso podia ser feito consistentemente sem leis de exceção, e isto é mesmo uma exceção.

No entanto, há dois riscos nesta concentração de poder. Um é o lado autoritário: por exemplo, a referência a limites ao direito de greve na saúde e nos serviços públicos é uma provocação a esses trabalhadores, que estão na linha da frente do combate. Deviam receber um subsídio de risco e não uma ameaça, aliás unicamente motivada por presunção ideológica. Mas há pior: o regime de lay-off, que, mesmo depois de adaptado, é ineficaz na defesa de postos de trabalho mas tem um custo, inaugurar a primeira medida de corte de salários. A alternativa era mais cara no imediato (apresentei aqui no Expresso a proposta e a conta, com o meu colega Ricardo Cabral), mas evitava falências e protegia empregos e salários. Nos próximos meses teremos pela frente muitas escolhas deste tipo entre austeridade, inicialmente mitigada, e sustentação económica. A complacência dos governos com a redução de salários promove o perigo que agrava a segunda vaga.

O perigo europeu

E há o outro perigo: a UE a fingir que é uma união. Depois do episódio “repugnante” da acusação holandesa à pretensa culpa orçamental espanhola, abundam por estes dias as manobras de diversão. Em todo o caso, os coronabonds estão moribundos: Merkel disse que não e pronto. Aliás, se era uma solução politicamente difícil pela resistência alemã, só seria útil em três condições estritas: primeiro, dimensão suficiente, uma emissão que cobrisse custos de relançamento da ordem de 10% do PIB de cada país; segundo, pagamento diferido no tempo, por exemplo por 50 anos a um juro próximo de zero (o que significaria para Portugal não pagar em média mais do que o equivalente a 0,2% do PIB por ano); terceiro, a operação não poderia diminuir a capacidade soberana de cada Estado para definir o seu programa de reconstrução. Se a emissão estiver amarrada a um programa de austeridade, o remédio agrava a doença. Se pesar significativamente nas contas públicas, provoca uma crise de dívida soberana. Se não for suficiente para a reconstrução, os países do Sul ficarão nas mãos da especulação financeira. É mesmo tudo ou não vale nada. Não vai ser nada.

Assim, prepara-se uma operação cosmética que diversos governos, temendo a alternativa que recusam sequer pensar, podem vir a aceitar, sobretudo se a conseguirem esticar. Poderá ser um cocktail de empréstimos, mais alguma caridade. Rutte oferece um donativo e as chancelarias afadigam-se adaptando linhas de crédito do mecanismo europeu de estabilidade para calar os governos do Sul. Está disponível para isso uma parte desse fundo, mas este só alcança 3,5% do PIB da zona euro e nem todo é mobilizável. Pode ser que o montante seja acrescido, embora os “frugais” não queiram que ultrapasse os 2% de cada PIB. Aliás, na letra da lei, seria um empréstimo com a obrigação de medidas restritivas. Mesmo admitindo que, com a discricionariedade que o Conselho usa, fosse possível mudar algumas normas e inflacionar o pacote, seria sempre a solução do Norte contra o Sul. Pouco e caro. Para Portugal, seria estritamente inaceitável, dado que estamos a ouvir as primeiras salvas dessa segunda vaga e já sabemos o seu nome, austeridade. Mas as cartas ainda não estão todas na mesa.

Artigo publicado no jornal “Expresso” de 4 de abril de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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