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SEF: é preciso mudar tudo

Além da punição exemplar dos torturadores, das condolências e da indemnização à família, é preciso questionar profundamente o modelo político de acolhimento que temos e a estrutura institucional que permitiu que este crime ocorresse. Deixo quatro notas para esse debate urgente.

Já quase tudo foi dito sobre o bárbaro assassinato de Ihor Homenyuk nas instalações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no aeroporto de Lisboa, às mãos das autoridades portuguesas. Além da punição exemplar dos torturadores, das condolências e da indemnização à família, é preciso questionar profundamente o modelo político de acolhimento que temos e a estrutura institucional que permitiu que este crime ocorresse. Deixo quatro notas para esse debate urgente.

1.

Parece que se está a chegar finalmente a um consenso sobre o absurdo que é tratar a relação entre o Estado e as pessoas migrantes como se fosse uma questão de polícia, em que pessoas que não cometerem qualquer crime podem ser detidas, privadas de liberdade sem qualquer garantia de apoio e proteção jurídica, e submetidas a todo o tipo de arbitrariedades, humilhações e agressões. Há anos que é assim e não faltaram denúncias das associações de direitos humanos e da Provedora de Justiça sobre o tema. Não basta, pois, encerrar estes “centros de instalação temporária” nos aeroportos, nem basta garantir – coisa que aliás devia ter sido assegurada desde sempre - o acesso imediato a advogados nos aeroportos. Pequenas adaptações humanizadoras do modelo policial não chegam. É preciso acabar definitivamente com a ideia de que a relação entre os imigrantes e o Estado português é estabelecida através de uma polícia (tratando as pessoas, à partida, como criminosos em potência) e não de uma autoridade administrativa.

2.

O caso de Homenyuk não é um caso isolado, embora nem todos os abusos e maltratos nos Centros de Instalação Temporária tenham tido consequências tão trágicas. Além disso, os disfuncionamentos do SEF não são apenas nestes centros. Milhares de imigrantes que trabalham em Portugal e fazem os seus descontos para a Segurança Social ficam anos à espera de ver os seus documentos emitidos. Ao longo dos anos privilegiou-se o reforço do corpo policial, em lugar de se ter apostado em reforçar o pessoal administrativo. Esta decisão fez com que hoje em dia seja quase impossível obter uma marcação, o que deixa milhares de pessoas sem acesso aos documentos mais básicos. Ao SEF faltam meios, mas abunda, também na componente administrativa, uma incompreensível arbitrariedade e injustiça.

Portugal deve ter uma polícia para investigar as redes de tráfico e essa é uma boa missão para o SEF, em relação à qual não falta o que fazer. Basta pensar, por exemplo, na dimensão do trabalho forçado na agricultura nos campos do olival intensivo do Alentejo, ou nas vindimas, a norte. Essas missões de investigação e combate às redes de tráfico e exploração, para as quais não basta a atuação da Autoridade para as Condições de Trabalho, precisam de mais meios e de um corpo profissional com a experiência que equipas do SEF acumularam. Por outro lado, existe uma dimensão policial do controlo da fronteira que o Estado assegura. Mas o acolhimento de migrantes e de requerentes de asilo não é competência para uma polícia. Como não o é a renovação dos vistos ou autorizações de residências, que têm de ser feitas nas mesmas lojas dos cidadãos ou conservatórias onde qualquer cidadão português renova o seu cartão de cidadão. Lidar com uma polícia para assuntos administrativos é um absurdo que tem de ser definitivamente eliminado. Esperemos que seja desta.

3.

Infelizmente, a discriminação, a xenofobia e a violência racista não são casos isolados nas polícias portuguesas. A Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância tem produzido relatórios em que acusa explicitamente a hierarquia da PSP e a Inspeção-geral da Administração Interna de serem tolerantes ao racismo, apelando mesmo a que estes organismos parem de “relativizar a violência grave” contra as pessoas racializadas e migrantes, bem como a “pôr termo ao sentimento de impunidade que prevalece entre os seus agentes”. Este organismo do Conselho da Europa tem insistindo que o Estado português deveria por em marcha uma política de tolerância zero relativamente ao racismo nos seus serviços. O SEF tem sido também objeto de várias denúncias deste tipo de comportamentos de violência racista, encontrando-se alguns sob investigação pelo Ministério Público. A morte de Homenyuk não foi, infelizmente, um mero acidente de percurso em instituições que seriam exemplares.

Também por isso, a proposta de Magina da Silva, no encontro com o Presidente da República, de fusão do SEF e da PSP numa grande polícia nacional é duplamente disparatada. Em primeiro lugar porque não cabe ao chefe da PSP anunciar decisões políticas desse tipo, por mais que sonhe em liderar uma super-polícia com um corpo militarizado. Em segundo lugar, porque isso tenderia a reforçar o próprio modelo policial na relação com os estrangeiros, o que é um erro absoluto. Não é a primeira vez, aliás, que Magina da Silva brinda o país com um discurso irresponsável de pistoleiro, como quando defendeu a compra de carros blindados como os que foram usados na Guerra do Iraque para intervir nos “bairros de risco”. É exatamente deste tipo de discursos que precisamos de nos libertar.

4.

A reação das instituições ao assassinato de Ihor Homenyuk esteve muito aquém do exigível. O Presidente da República, conhecido pela abundância dos seus telefonemas e notas de felicitação e condolências, utilizou a esfarrapada desculpa de não querer “interferir na investigação” para justificar não ter tido uma palavra para a família do cidadão ucraniano assassinado por agentes do estado português. A direção do SEF esteve meses sem assumir que havia responsabilidades, parecendo mais empenhada em encobrir o sucedido do que em ser motor de uma transformação profunda na instituição. E o Ministro da Administração Interna – que, reconheça-se, abriu de imediato um inquérito e processos disciplinares aos envolvidos – não contactou a família, resistiu meses a pagar a indemnização e só por arrasto e sob altíssima pressão política e mediática substituiu a direção do SEF (cuja saída foi, no entanto, apresentada como “voluntária”) e anunciou uma reestruturação cujos contornos são ainda desconhecidos.

Este caso trágico, contudo, tem de ser a oportunidade para mudar tudo no SEF. O modelo de relacionamento do Estado com as pessoas migrantes e refugiadas não precisa de uns remendos ou alterações cosméticas. Tem de ser integralmente substituído. E haverá pouco quem acredite que Eduardo Cabrita tem ainda condições para conduzir tal empreendimento.

Artigo publicado em expresso.pt a 18 de dezembro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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