Na Classificação Portuguesa das Profissões em vigor, um “estafeta” é definido como o trabalhador que “entrega telegramas no local”. Há 15 anos, quando se aprovou este instrumento, ninguém imaginava que haveria estafetas com mochilas térmicas e sem telegramas dentro. Ninguém imaginou que seriam como são, pessoas-empresarializadas, presas a novas formas de subordinação algorítmica, atiradas para fora do direito do trabalho, sem nenhum contrato a regular a sua nova profissão.
Será em 2028 que o Instituto Nacional de Estatística atualizará a Classificação das profissões, seguindo as recomendações da Organização Internacional de Trabalho. Na última revisão, em 2010, desapareceram algumas: cordoeiro ou dama de companhia. Outras foram acrescentadas: “coletor de moedas de parquímetros” ou “chefe de aldeia”.
Que novas profissões serão reconhecidas em 2028? Quais serão oficialmente declaradas extintas? Passará a haver a profissão de “Faceboquinista”, de “Instagramador”, ou de “agente de Tiktok”? Serão obsoletos, antes mesmo de terem chegado a existir oficialmente, o “verificador de factos” ou o “moderador de conteúdos”, profissões agora esconjuradas pelos oligarcas digitais que extraem rendas dos nossos dados?
Que valor terão, em 2028, profissões tão essenciais e hoje tão desconsideradas: cuidador de idosos, vigilante, trabalhadora da limpeza, recoletor de resíduos, ajudante de cozinha, operário agrícola, repositor de supermercado? Terão o devido reconhecimento aquelas profissões que se dedicam a reparar, a consertar e a manter as coisas em vez de produzir mercadorias descartáveis? É possível que, em algum futuro imaginário, um estatístico assomado pela inspiração do Pina ou do Manoel de Barros, se lembre de estatuir ofícios tão delicados como “observador de pássaros” ou “guardador de águas”?
E a locução “bom fim de semana”, filha de lutas laborais e do direito de trabalho? Será ultrapassada pela generalização da laboração contínua ou, pelo contrário, passará a abranger mais um dia de descanso semanal?
O trabalho mudou e vai continuar a mudar. Mas não perdeu nem perderá centralidade. O emprego feminizou-se, aumentaram as qualificações, passámos a ter mais um milhão de trabalhadores estrangeiros, essenciais para o país. As tecnologias prometeram aliviar o fardo do trabalho, mas inventaram novas formas de trabalharmos mais, a toda a hora e em qualquer lugar.
Criaram-se na lei novas modalidades precárias de emprego e de flexibilização dos horários; a economia continua vulnerável à concorrência internacional e às deslocalizações; plataformizaram-se e deslaboralizaram-se profissões; a contratação coletiva foi debilitada pela caducidade unilateral, pela precarização, pela estagnação da negociação salarial; a retórica anti-imigração, a que aderem até os mais insuspeitos, ignora factos, produz percepções falsas, e promove o trabalho clandestino e mais exploração.
Mas nos últimos 15 anos, houve também sinais positivos. Por este Parlamento dentro, entraram as reivindicações de precários, que conseguiram mecanismos de reconhecimento contra os falsos recibos verdes, em 2013, e um processo de regularização de vínculos no Estado, em 2017. Entraram trabalhadores das lavarias e das pedreiras, que viram em 2018 reconhecido pelo Parlamento o desgaste da sua profissão. Entraram as amas e as ajudantes familiares, marginalizadas por diplomas legais do cavaquismo, que conquistaram, a partir de 2019, contratos com a segurança social ou com a Santa Casa. Entraram as cuidadoras e os cuidadores informais, e voltarão - porque ainda só muito parcialmente viram o seu trabalho reconhecido. Entraram tantos outros.
Em alguns momentos, a lei deu sinais importantes contra a exploração: quando aprovou o dever de desconexão patronal, em 2021, ou quando regulou o teletrabalho, ou quando em 2023, acabou com a abdicação dos créditos laborais ou criou uma nova presunção de laboralidade para acolher no direito do trabalho os profissionais da economia uberizada.
Continua, todavia, a haver enormes vazios. Dou três exemplos. Há mais de um milhão e quinhentos mil trabalhadores do privado que não têm subsídio de refeição. Mas almoçam como os outros. Não é tempo de universalizar este direito na lei? Os 950 mil, quase um milhão de trabalhadores por turnos, de tantos setores, ficaram à margem das últimas alterações à lei laboral e não viram ainda os seus direitos plenamente reconhecidos. Nos próximos meses, o Bloco de Esquerda estará na rua a recolher assinaturas para que haja mais direitos para quem trabalha por turnos. Terceiro exemplo: mais de 100 mil trabalhadoras do serviço doméstico que continuam a ser apoucadas por uma lei à parte, fora do Código, e por um regime de segunda na segurança social que as deixa desprotegidas. Há neste Parlamento 3 diplomas, à espera de agendamento, que podem corrigir estas injustiças. Estas trabalhadoras não são filhas de um Deus menor.
Para enfrentar a direita radicalizada, precisamos de um movimento organizado de trabalhadores, voz coletiva de homens e mulheres, nacionais e imigrantes, do trabalho remunerado e não remunerado. Precisamos do espírito de Filadélfia, cidade onde em 1944 se aprovou a Declaração de Princípios da Organização Internacional do Trabalho, que tem como primeiro artigo a asserção: “o trabalho não é uma mercadoria”. Num tempo de novas corridas armamentistas na Europa e no mundo, lembremos o gesto dos fundadores da OIT, que deram a volta ao conhecido provérbio romano “se queres a paz, prepara-te para a guerra” e quiseram, quando lançaram a primeira pedra do edifício da OIT, que debaixo dela ficasse a frase: “se desejas a paz, cultiva a justiça”.
A partir da próxima semana inicio eu próprio uma nova profissão como professor na Universidade do Porto e não estarei já no Parlamento. Mudarei de ofício, mas não deixo o trabalho político, nem o compromisso militante com o meu partido e com estas causas. Estarei onde estou e sempre estive. Quero expressar o meu reconhecimento a todos os trabalhadores e trabalhadoras deste Parlamento e a todos os que nele procuram ter uma ação e um mandato político “antropologicamente amigo do trabalho”, para utilizar a expressão do saudoso Jorge Leite.
Se queremos a paz, cultivemos a justiça.
Declaração política de José Soeiro na Assembleia da República, 29 de janeiro de 2025
