Entre PS, PSD e CDS-PP, "a coisa" vai. Mas "a coisa" já teve melhores dias. À semelhança do que sucede em Espanha, onde PP e PSOE se passeiam no poder desde a morte de Franco e a nova Constituição de 1978, a visão externa de que Portugal e Espanha são países sem alternativas ao bloco central bipartidário (nos antípodas da volatilidade da Itália onde - quase - tudo pode acontecer) fazem do nosso sistema político um paraíso para grupos de teste, tubos de ensaio, especuladores sanguinários e fornecedores de pisa-papéis. Num país à beira-mar plantado, a aparência de quietude, a certeza de que "o povo é sereno" é uma das mais maniqueístas e perigosas formas de subjugação e dependência.
Em Espanha, o sistema bipartidário está à beira do colapso e nunca tanto, como agora, urge passar a fronteira e olhar à volta. O Podemos, volvidos três trimestres de partido político e após eleger cinco deputados para o Parlamento Europeu no seu primeiro trimestre de vida, seria hoje o partido mais votado em Espanha caso houvesse eleições legislativas, segundo sondagem domingueira do "El País", tomando o poder com 27,7% dos votos (à frente do PSOE com 26,2% e do PP com 20,7%). O terramoto é político. O poder de Mariano Rajoy cairia para terceira força com quase menos 10% do que há um mês e os socialistas de Pedro Sánchez cometem a proeza de só cair 5% no mesmo curto espaço de tempo (aliás, a crença em Sánchez assemelha-se à crença socialista em António José Seguro, já que poucos acreditam que renove o partido ou capte novos eleitores). No paralelismo com Portugal, o PP ainda não deixou cair o seu coelho, o PSOE ainda não encontrou nada que dê à costa, mas o Podemos tem um nome em ascensão e é candidato a primeiro-ministro: Pablo Iglesias.
Começa como uma ameaça e, subitamente, envolve-se com o país numa relação entre a confiança e o voto de protesto, entre a admiração pelo que é novo e a rejeição do que se tem como mau ou mais do mesmo. Mau do mesmo, portanto. Apresentado em Janeiro de 2014 com o manifesto "Mover ficha: convertir la indignación en cambio político", elaborado e assinado por dezenas de intelectuais e personalidades, subscrito por 50 mil pessoas em 24 horas, o Podemos procura a agregação de toda a esquerda espanhola para poder ser poder em Espanha. Não é um empecilho à esquerda, não é uma muleta de circunstância. O Podemos quer afastar o PP e o PSOE da governação após mais de 30 anos de contaminação mútua e, aparentemente, o povo está disposto a votar. Resta saber se esta sondagem é um aviso até às eleições legislativas espanholas em 2015 ou se a ameaça se concretiza em votos. Um crescimento eleitoral de quase 10% em quatro meses não é um fenómeno normal mas, com menos de um ano de idade, o que é a normalidade para o Podemos? A exemplo do que se prevê poder acontecer com o Syriza de Alexis Tsipras na Grécia, a concretização de uma mudança de rumo à esquerda em Espanha terá reflexos impensáveis há um ano e coloca a Europa à margem de qualquer dose de previsibilidade nos tempos mais próximos. Com todas as diferenças, só me assalta o paralelismo com a tão exorbitada Primavera Árabe. E todos sabemos como, nessa primavera, se encontram todas as estações do ano.
Há várias teorias sobre a possibilidade de implosão do actual sistema político. Em Espanha, Rajoy terá que sobrevoar o dia 9 de Novembro na Catalunha e sobreviver no chão. Mas depois, terá pela frente a árdua tarefa de dar as mãos a Pedro Sánchez, suplicando ao povo espanhol pela unidade nacional contra quem está farto da receita da austeridade e da condenação à pobreza e aos especuladores. Como defende Pablo Iglesias, líder do Podemos, as pessoas não podem continuar a pensar que os seus problemas pessoais não têm, tantas vezes, uma resposta pública. E acrescenta: "O céu não pode ser alcançado por consenso". Mas a esquerda em Portugal podia começar a pensar nesse consenso se algum dia quiser mesmo vir a ser poder.
Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 4 de novembro de 2014