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A Saúde vai custar mais, ainda bem

O problema do SNS é que, de há muitos anos, os governos escolheram não pagar e fingir que pagam.

A saúde é um custo que não tem preço, escrevia alguém há anos. É certo em dois sentidos: se os cuidados públicos de saúde estão fora dos mercados, não têm preço, mesmo tendo custo; e, mais importante, a vantagem desse serviço não tem preço, é tal que constitui um pilar da democracia de confiança. Então, aceitar a saúde pública exige pagar um custo crescente. O aumento da esperança média de vida, o prolongamento de cuidados na terceira e quarta idades, os tratamentos de patologias com medicamentos inovadores e caros, as maiores exigências técnicas atuais, tudo vai custar mais.

Não pagamos?

Se assim for, ou pagamos ou não pagamos. Se não pagamos, fica mais caro: criamos oportunidades para os privados, que vão fornecer os seus serviços a quem tem dinheiro e teremos duas medicinas, uma para pobres e outra para ricos. E um dia a revolta vai chegar ao palácio. Se pagamos, é mais esforço orçamental. É o que prefiro: uma parte crescente dos nossos impostos irá para cuidar da nossa gente, que viverá melhor, e mesmo assim não se conseguirá atender a tudo.

O problema do SNS é que, de há muitos anos, os governos escolheram não pagar e fingir que pagam. O financiamento do SNS tem crescido mais devagar do que o PIB e o governo das direitas cortou-o, além de que o Estado vai usando o pouco que tem para financiar o privado, que em 2019 já absorverá 38% da despesa corrente. Resultado, de 2000 a 2018 a despesa de saúde com privados aumentou 80%, sendo metade paga pelo Estado e metade pelas famílias.

A estratégia dos privados tornou-se por isso mais agressiva. Cientes da sua fatia no Orçamento, apostaram no bloqueio à extensão do serviço público (para preservar atos de saúde exclusivos do privado), primeiro, e na sua degradação, depois. Aliás, os privados não hesitam na escolha de classe: se quem chega à urgência é pobre, vai recambiado para o hospital público; se chega ao teto do seu seguro, porta fora.

Remendos

Ora, o Governo contratou mais médicos (3500, mas o SNS tem menor massa salarial total), ainda insuficientes, e manteve um conflito absurdo com a enfermagem, limitando-se assim a correr atrás do prejuízo. O subfinanciamento do SNS dificulta as contratações — com Centeno, as Finanças atrasaram a data dos concursos de médicos para pouparem uns cobres — e cria desespero entre os profissionais. Desse modo, o que era provisório arrasta-se no tempo: além do caso tão falado da pediatria oncológica no São João, em novembro de 2017 o seu diretor de neurocirurgia recusou a continuação do prefabricado do seu serviço, já com dez anos. Não há anestesistas e as cirurgias param; quando são abertos concursos não há vagas para os hospitais que mais deles precisam. Tudo parece ser feito com os pés.

As vagas de demissões exprimem esses impasses hospital a hospital, no governo anterior (junho 2014, 58 diretores demitem-se no São João; janeiro 2015, Garcia da Orta) e neste (maio 2016, demissões em Santarém e no Algarve; junho 2017, Amadora-Sintra; em 2018, Tondela, Lisboa Central, Amadora-Sintra, Gaia, Estefânia). Cada dia vai crescendo o desconforto.

Avanços e recuos

Há certamente mais unidades de saúde familiar (quase o dobro das de 2010) e as pessoas sem médico de família são menos (17% em 2010, 7%, ou 700 mil, agora). Mas as carências do SNS são agora medidas com outros critérios. As listas de espera, as faltas de especialistas, os erros na provisão de medicamentos, tudo será lido pela bitola mais exigente. Ainda bem.

É por isso dificilmente aceitável o jogo da Lei de Bases de Saúde proposta pelo Governo, propondo uma reconfiguração literária, sem novas regras que quebrem o cerco ao SNS e sem garantias de contratações e financiamento. Alçapões, dizia António Costa.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 26 de janeiro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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