Sarampo: ver para lá da ponta do nariz

porJoão Semedo

27 de abril 2017 - 23:04
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A exclusão social e um SNS que deixou de chegar a todos e a todo o lado são o que melhor explica os milhares de crianças sem vacinas.

A primeira coisa a fazer para resolver um problema é conhecê-lo. Procurar as suas causas, ver os seus contornos, perceber como evolui, avaliar a sua dimensão e os impactos que pode provocar. Não creio que seja apenas no domínio do pensamento científico que deva proceder-se assim. Pelo contrário, tal método é o melhor, seja qual for a natureza da situação com que nos defrontamos.

Escrevo isto a propósito da torrente de comentários que li e ouvi sobre o atual surto de sarampo que a morte de uma jovem de 17 anos – como seria de esperar – ainda mais intensificou. Salvo raríssimas exceções, todos esses comentários optaram por zurzir impiedosamente os adultos não vacinados e os pais das crianças que não têm as vacinas em dia, seja porque são irresponsáveis e negligentes, seja porque aderiram às campanhas anti-vacinas, em ambos os casos porque põem em risco a saúde e a vida de terceiros ou dos próprios filhos. O que, a ser assim ou apenas assim, seria sem dúvida inaceitável, indesculpável.

Chocaram-me o estilo e os termos utilizados, a facilidade e simplicidade com que se acusam pais e famílias, como se tudo pudesse ser reduzido à crítica do seu comportamento. Sem disfarce, não foram poucos os apelos à perseguição, à punição, à segregação, numa espiral de agressividade e irracionalidade que, surpreendentemente, contagiou gente à direita e à esquerda.

Não faltaram as mais variadas sentenças para resolver o problema: impor a obrigatoriedade da vacinação, retirar aos pais a tutela dos filhos, proibir a inscrição escolar das crianças por vacinar, suspender prestações da segurança social aos pais com filhos não vacinados, retirar-lhes benefícios em sede de IRS, congelar-lhes as contas bancárias. Houve até quem sugerisse a criminalização e lembrasse que a prisão é o lugar dos criminosos.

Segundo algumas estimativas, há entre dez a quinze mil crianças por vacinar em Portugal. Alguém acredita que em Portugal haja tantos pais negligentes ou adeptos da moda anti-vacinas? Julgo que teriam estado bem melhor os comentadores se tivessem começado por tentar responder a esta pergunta. Porque é evidente que a resposta é “não”.

A principal razão que explica aquele número é a exclusão social em que vivem muitas famílias, longe do SNS e de tudo o mais que constitui a vida, os hábitos, os direitos, a rotina das famílias integradas. Nessas famílias não há vacinas, como não há dinheiro, comida, remédios, emprego, casa, escola ou livros. Nem médico de família. E muito menos modas anti-vacinas.

A exclusão social e um SNS que deixou de chegar a todos e a todo o lado são o que melhor explica esses milhares de crianças sem vacinas. Essas crianças, ou de outra forma, os seus pais, são mais vítimas que culpados. Vítimas de uma sociedade e de um estado que falham nos seus deveres, no dever de os incluir e de lhes garantir os seus direitos.

Certamente que há incúria de alguns pais e, também, quem se tenha deixado enganar pelas fantasias pseudo-científicas anti-vacinação. Mas, repito, tudo isso é marginal, não tem dimensão suficiente para explicar o surto em curso que, significativamente, atingiu profissionais de saúde e até pessoas vacinadas. Insistir nessa explicação é errar o alvo.

A saúde pública está cheia de (maus) exemplos dos caminhos que não devem ser seguidos no controlo e combate às doenças relacionadas com comportamentos. As doutrinas proibicionistas, repressivas, autoritárias, compulsivas, punitivas, podem sossegar consciências mas falham em toda a linha. A obrigatoriedade muda o quê? Vence a exclusão, alarga o SNS, convence alguém? Claro que não.

Julgo que o governo, as autoridades e os profissionais de saúde – na esmagadora maioria dos casos – têm estado bem. Mas é preciso ir mais longe nas medidas: não basta as escolas informarem os centros de saúde dos alunos sem vacinas ou obrigá-los a uma quarentena, é preciso responsabilizar e dotar os centros de saúde dos meios que lhes permitam contactar as famílias, ir ao seu encontro, explicar as vantagens da vacinação, convencer pela persuasão e aplicar as vacinas em falta. Não acredito que haja uma mãe ou um pai que recusem. Não se pode é ficar à espera que eles apareçam. Ou que os filhos apanhem sarampo.

Artigo publicado na revista “Visão” em 26 de abril de 2017

João Semedo
Sobre o/a autor(a)

João Semedo

Médico. Aderente do Bloco de Esquerda.
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