Não há poética bela o suficiente para escrever a introdução deste artigo sobre a Sara Tavares. Basta, talvez, invocar o seu nome, que instantaneamente sentimos aquele nervosinho amável. Não tenho a arte de conseguir descrever a candura, a bravura e a aventura da Sara. Fica uma tentativa de convite para recordarmos a sua vida de disruptora encantadora.
Em 1994, quando a Sara Tavares venceu o Chuva de Estrelas com o One Moment In Time da Whitney Houston, abriram-se portas. As portas das nossas casas. As portas da mudança.
A sua voz e carisma conquistou-nos novamente, nesse mesmo ano, no Festival da Canção e na Eurovisão. Chamou a música e chamou a esperança a muitas miúdas negras de Almada, sedimentando-se eternamente nas nossas rádios e memórias.
Sara preparava-se para “seguir o liceu, ser operária”, mas agarrou a oportunidade da música e andou ao sabor do vento, sempre inconformada.
No Portugal dos anos 90, a Sara foi vanguarda contra a herança colonial e racista que pairava (e paira ainda) no ar do pós-25 de Abril, contra o machismo impregnado na nossa sociedade. Ninguém ficou indiferente ao impacto da Sara, musical e humano.
“As suas canções ou nos trazem uma paz profunda ou nos fazem descobrir movimentos de anca que nunca pensámos dominar. Viajamos entre o crioulo e o português, mas sentimo-nos sempre em casa”, disse Luísa Sobral sobre Sara no seu podcast.
A Sara disse uma vez que produzia música com “os horizontes para música africana que ainda não conhecia”, numa escolha constante de procurar ainda mais ligação a músicas africanas não ocidentalizadas, ao soul, ao gospel, e a vontade de explorar a suas raízes e a uni-las a músicas mais contemporâneas.
Sara projetou um som experimental, mas tão sensível e genuinamente transversal. A sua linguagem é fruto da sua “verdade”, “que não era o português do Paulo de Carvalho, do João Gil ou do Carlos Tê. E fui percebendo que não era também o crioulo da Cesária Évora, mas qualquer coisa entre o crioulo e o português”. Sara levantou uma ponte entre a diáspora africana, a música ligeira portuguesa e a música contemporânea. O resultado: uma experiência que todas partilhamos e sentimos tão subtilmente dentro de nós. O seu papel de fusão e curiosidade valeu-lhe um dos mais importantes repertórios da world music internacional e levou a sua poesia e cabo-verdianidade pelo mundo fora.
Muito antes de falarmos de Lisboa Crioula, de representatividade, das múltiplas conquistas feministas (ainda recentes), Sara foi pioneira. Foi mãe de uma geração de cantautoras, de artistas africanos, de um som diferente em e para Portugal. A música lusófona nunca mais foi a mesma.
As letras da Sara ilustram muitos amores, muitas memórias. E à sua voz criativa e inspiradora ligou-se uma consciência social fervente. As suas canções estão repletas de ingredientes da doçura afirmativa, gentil, mas destemida, nunca deixando de falar de racismo, de liberdade sexual, de bissexualidade e do sentimento de comunidade. E de um disco para o seguinte, Sara agarrou-se cada vez às suas raízes, cantando mais em cabo-verdiano e com uma autenticidade desmedida.
A Sara não teve uma vida fácil. Não ficou calada perante a injustiça e a hipocrisia. Deu a cara pela sua geração. Gritou pela representatividade, recusando-se a moldar-se às vontades da indústria e da sociedade machista e branqueadora. Uma pessoa “desapegada, vivendo sempre intensamente, à busca da outra margem”.
A Sara que nasceu em Lisboa, de pais cabo-verdianos, e foi logo jovem morar para o Pragal, Almada, com a avó emprestada – a única peça da sua vida da qual sentiria saudades.
A Sara do futebol em Cacilhas. A Sara que esbarrou contra o racismo e deu um lugar de pertença, de esperança às mulheres negras. A Sara que rasgou a hegemonia masculina da indústria musical. A Sara que desbravou horizontes sem fim para a cultura da diáspora africana. A Sara doce e assertiva. A Sara firme e leve. A Sara do timbre mais belo.
Só a doçura da voz da Sara nos sara o lamento da sua partida. As danças calorosas ao som da sua música são um bom remédio nestas semanas mais frias. E será difícil conter a felicidade delicada e contagiante. Assim, sim, é que a Mana Sara merece ser lembrada. Como um ponto de luz na nossa cultura e memória coletiva.
Artigo publicado no jornal “O Setubalense” a 22 de novembro de 2023