Está aqui

Sangria para o privado não é bom para a saúde

Não está em causa a liberdade do setor privado para abrir unidades onde bem lhe aprouver. A grande questão é se devem ser os nossos impostos a financiar a expansão do setor privado enquanto o SNS definha.

A margem sul de Lisboa é uma das regiões do país com maiores problemas no acesso à saúde. Só em Almada há 40 mil utentes sem médico de família, outros tantos no Seixal e em Sesimbra. A falta de cuidados primários é um enorme problema à partida que se torna num pesadelo à chegada ao Hospital Garcia de Orta, visivelmente subdimensionado para as necessidades.

Feito o diagnóstico, há duas formas de olhar para as soluções. Para quem acha que cabe ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) a responsabilidade pela saúde de todos, é tempo de pôr em primeiro lugar o investimento no SNS. Já para quem pensa em negócio, é boa altura para construir um novo hospital privado em Almada. Foi exatamente isso que a CUF fez.

Não está em causa a liberdade do setor privado para abrir unidades onde bem lhe aprouver. A grande questão é se devem ser os nossos impostos a financiar a expansão do setor privado enquanto o SNS definha. Quem disser que esta relação não existe, mente. O que tem dado alavancagem à capacidade financeira do setor privado da saúde é a sangria de recursos públicos. Mas como é que chegamos ao ponto de permitir que 40% do orçamento da saúde vá diretamente para as mãos da CUF, Mello Saúde, Espírito Santo Saúde, Lusíadas e Trofa Saúde?

O paralelo mais simples para explicar este absurdo é a educação. O país compreendeu que não é possível sustentar, em simultâneo, a escola pública e uma renda aos colégios privados. E que, com respeito pela liberdade de todos, o dever do Estado é investir na escola pública. Os contratos de associação voltaram a ser o que eram: uma solução temporária em que o Estado paga ao privado enquanto não existe resposta pública. Ou seja, o ensino privado é supletivo do ensino público.

Se, na educação, essa batalha foi ganha logo no início da legislatura, na saúde ainda está a começar. A destruição do SNS às mãos de quem defende o negócio milionário da saúde privada é sustentada, na prática, por dois veículos: as PPP, em que os privados assumem a gestão de hospitais públicos, e que representam 40% dos negócios do Grupo Mello e 20% da Luz Saúde; e os serviços convencionados como cheques-cirurgia, meios complementares de diagnóstico e outras contratualizações que vão aumentando a promiscuidade entre o SNS e os privados.

O reverso desta moeda é a perda de capacidade de resposta do SNS em algumas áreas, resultado do desinvestimento no setor público e do investimento no privado. Durante o anterior governo (PSD/CDS) cortou-se mais de 1000 milhões de euros ao orçamento anual do SNS, ao mesmo tempo que as transferências para privados ascenderam a 1300 milhões de euros.

Na lei, estas opções têm sido sustentadas por uma Lei de Bases da Saúde aprovada em 1990 pelos partidos que foram contra a criação do SNS, PSD e CDS. Por isso, não se estranha que o diploma assuma como um dos objetivos do SNS apoiar “o desenvolvimento do setor privado da saúde e, em particular, as iniciativas das instituições particulares de solidariedade social, em concorrência com o setor público”.

É um debate que tem décadas sem que as posições de fundo se tenham alterado. Há quem queira defender um serviço público de saúde, gratuito e universal. E há quem queira sacrificá-lo para alimentar o setor privado. É por isso que não deve ser desperdiçada a oportunidade criada pela apresentação de várias propostas de revisão da Lei de Bases da Saúde, um debate lançado por António Arnaut e João Semedo numa proposta que o Bloco de Esquerda acolheu como sua e que deixa claro o caráter supletivo dos privados em relação ao setor público e ao investimento no SNS.

Da parte do governo também surgiu uma proposta apresentada pela nova ministra da Saúde. A polémica que gerou por considerar que o privado deve ser supletivo na gestão de hospitais públicos é mais uma prova de que o debate está atual e mexe com interesses instalados. É um sinal, e o Bloco cá estará se o governo quiser negociar e aprovar à esquerda uma lei de bases que garanta um SNS robusto, de qualidade, universal e gratuito.

Só não quer este debate quem está confortável com o fluxo constante para o privado que vai sangrando o SNS. O PSD e o CDS, certamente. E, pelos vistos, também o Presidente Marcelo que, ao exigir um acordo de bloco central para promulgar uma futura lei, quer obrigar o governo a negociar uma lei de bases à direita. Ora, isso já temos nós e com os resultados que estão à vista.

Artigo publicado no jornal “I” a 20 de dezembro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
Comentários (1)