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Salvar o Natal

O problema da política “do pau e da cenoura” é que, responsabilizando-nos a todos individualmente, pode acabar por atribuir culpas a quem não as tem se o Natal acabar por não correr como o esperado.

Ainda sem certezas sobre quando chegaremos ao novo pico da pandemia, o Governo multiplicou-se em declarações e anúncios sobre a operação “salvar o Natal”, uma estratégia ainda semi-desconhecida mas que foi entendida como um pedido preventivo de compreensão para medidas futuras, uma espécie de licença para confinar, que terá como recompensa a reunião familiar na noite de 24 de dezembro.

A intenção é nobre, ninguém questiona isso, mas vale a pena discutir o resto e podemos começar pelas questões menos importantes. Interrogo-me se não se devia ter aprendido alguma coisa quando os profissionais de saúde recusaram a Liga dos Campeões como prémio e ter já arrumado o paternalismo como medida de gestão da pandemia. O problema da política “do pau e da cenoura” é que, responsabilizando-nos a todos individualmente, pode acabar por atribuir culpas a quem não as tem se o Natal acabar por não correr como o esperado.

Nunca devemos esquecer que estamos perante uma pandemia e a forma de lidar com ela é acima de tudo uma matéria de políticas públicas. As pessoas têm o dever de se proteger mas também têm o direito a ser protegidas pelo Estado, tanto na saúde como nos restantes direitos, liberdades e garantias, o que inclui direitos económicos e sociais, o que me leva à segunda questão que é a declaração do Estado de Emergência.

O Estado de Emergência não é uma receita contra a doença, não impõe nenhuma medida em concreto e certamente não suspende a democracia. É um recurso excecional que dá cobertura constitucional a medidas que implicam restrições ou suspensão de direitos, liberdades e garantias que não têm cobertura jurídica por leis ordinárias, e exige uma legitimidade reforçada porque depende do acordo de três órgãos de soberania: Governo, Assembleia da República e Presidente da República.

A declaração de Estado de Emergência deve ser sempre o último recurso e não pode ser prolongado eternamente, não há estados de emergência “preventivos” nem “por antecipação”, cada pedido de declaração tem de enumerar exatamente os direitos que pretende suspender e que medidas pretende adotar, e vale por si próprio. Posto isto, é evidente que no combate à Covid-19 pode justificar-se, como aconteceu no passado, a necessidade de restringir o direito de deslocação sem o qual não há cobertura constitucional para agravar as medidas de confinamento e de restrições à circulação, mas não podemos viver em permanente Estado de Emergência.

O país tem outros mecanismos legais, e deve reforçá-los através da Assembleia da República, para fazer o que é mais importante no combate à pandemia e à crise: robustecer o SNS e a possibilidade de requisição civil dos setores privado e social de saúde para que a crise pandémica não se transforme em mais um negócio para os privados e num novo assalto ao SNS; proteger os direitos de quem trabalha da lei da selva que muitas empresas adotaram durante a crise; e proteger a economia de uma vaga de falências anunciada. O que me leva à terceira questão.

Para muitos dos que são individualmente responsabilizados pelo combate à pandemia, a única hipótese é levantar-se todos os dias, apanhar o transporte público sobrelotado e ir trabalhar. A única opção é fechar a porta do café, do restaurante ou do bar porque o Governo disse que isso nos protegeria a todos. A única escolha possível é cancelar o espetáculo e esperar por dias melhores. Para esses, mais do que as reuniões familiares que todos desejamos mas que na verdade não dependem só de nós, o mais importante é chegar a dezembro com emprego, com salário, com comida na mesa. A responsabilidade do Governo é salvar-lhes o Natal.

Artigo publicado no jornal “I” a 5 de novembro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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