Salazar e Santa Comba Dão

porFernando Rosas

18 de março 2025 - 17:04
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Correr o risco de transformar os locais simbólicos do salazarismo em altares de romaria nostálgica sob o pretexto de os “interpretar”, parece-me totalmente fora de propósito.

Não é nova a diligência do município de Santa Comba Dão em tentar fornecer uma cobertura académica ao seu velho projeto de criação de um “centro interpretativo” sobre Oliveira Salazar e o regime salazarista numa “Escola Salazar” preservada com esse nome na cidade. Gorados todos os esforços de envolver na iniciativa unidades de investigação das universidades, parece ter sido a ideia novamente desenterrada, agora com a concordante parceria do arquivo Ephemera pertencente a José Pacheco Pereira.

No que me toca, também calhou, há poucos anos, ter sido abordado pelo presidente da Câmara de Santa Comba para promover a realização do recorrente e entupido projeto. A proposta, aliás muito amável, veio acompanhada de enfáticas garantias de rigor e autonomia nos procedimentos e de recusa de qualquer tipo de manipulação nostálgica. Todavia, recusei delicadamente o convite pelas razões que seguidamente passo a expor.

Em primeiro lugar, por razões de ética democrática. Considero que uma análise crítica e séria das ditaduras do século passado e do seu contexto não parece ser compatível com ter por centro patrimónios suscetíveis de, por razões várias, se transformarem em locais de culto e de nostalgia desculpabilizante da natureza desses regimes e dos seus crimes, tendendo à exaltação laudatória dos seus chefes. É normalmente o caso das evocações em torno das sepulturas dos ditadores, da sua terra natal ou de outros sítios ou monumentos propensos a toda espécie de pressões ideológicas, exploração emocional ou até de negociatas fabricadas a pretexto de uma espécie de saudade redentora e reabilitadora. Foi o que aconteceu em Predappio, terra natal de Mussolini, ou no Vale dos Caídos, em Espanha (pelo menos até lá estarem sepultados Franco e José António, líder da Falange), ou em vários locais de culto nacional-socialista na Alemanha.

não posso desconhecer o espírito dominante local onde parecem misturar-se o desejo de promover um “turismo negro” em volta do culto memorial do ditador e certos propósitos de ressurgimento neossalazarista

Em segundo lugar, e consequentemente, a minha recusa fundamentou-se no facto de a transposição desse risco de manipulação memorial para Santa Comba Dão ser óbvio e iminente. O concelho e o Vimieiro foram o local de nascimento do ditador e o teatro idílico dos seus lazeres; é lá que está sepultado, e é em Santa Comba que se preserva elogiosamente a sua memória numa “escola” a que se deu o seu nome e, segundo creio, vai albergar o tal “centro interpretativo”. Admito que as intenções dos atuais promotores possam ser as melhores, mas não posso desconhecer o espírito dominante local onde parecem misturar-se o desejo de promover um “turismo negro” em volta do culto memorial do ditador e certos propósitos de ressurgimento neossalazarista. Uma combinatória que no passado recente não só abafou as melhores intenções como se traduziu até em agressões físicas contra expressões de protesto anti-salazaristas.

Em terceiro lugar, discordo e discordei da colaboração com a iniciativa municipal por razões de manifesta inoportunidade política que estranho escapem aos atuais promotores. Decididamente, quando vivemos em Portugal, na Europa, nos EUA e globalmente uma perigosa e agressiva emergência de uma extrema-direita fascizante, correr o risco de transformar os locais simbólicos do salazarismo em altares de romaria nostálgica dos seus velhos e novos prosélitos sob o pretexto de os “interpretar”, parece-me totalmente fora de propósito. Permitam-me que recorde que o anúncio da exumação desta defunta ideia ocorre quando ainda estão em curso as várias iniciativas que assinalam o cinquentenário do 25 de Abril…

Em quarto lugar, para além das questões de fundo, invoquei razões práticas atinentes à viabilidade do projeto que, com ou sem a Ephemera, é de âmbito municipal. Criar um museu/centro de documentação sobre o ditador e o seu Estado Novo não é tarefa fácil que se resolva anunciando-a. Se não se pretende cair na mediocridade do improviso e do eterno e atamancado provisório, isso supõe a intervenção de arquitetos, museólogos, arquivistas, investigadores, técnicos de informática, pessoal auxiliar, além da aquisição e instalação de equipamentos, mobiliário, comunicações, luzes, sons, etc. Não só para a inauguração do espaço como para a sua futura manutenção e funcionamento diários a partir daí e numa cidade do interior do país. O que exige meios humanos e financeiros avultados que não está à vista o município poder dispor. Quem vai então financiar o dito “ centro”? Até acredito que generosos descendentes atuais das “forças vivas” do antigo regime possam contribuir para facilitar a coisa. Mas a coisa que daí sairia seguramente pouco teria a ver com as boas intenções anunciadas.

Por tudo isto não vejo motivos para mudar de opinião. Bem pelo contrário.

Artigo publicado no jornal Público a 16 de março de 2025

Fernando Rosas
Sobre o/a autor(a)

Fernando Rosas

Historiador. Professor emérito da Universidade Nova de Lisboa. Fundador do Bloco de Esquerda
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