Foi tão súbita como uma rajada de vento, levada foi a polémica pelo acordo de paz entre António Costa e o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, dias após o incidente.
Todos aqueles que à Direita se incendiaram pela indelicadeza (possivelmente, injustiça) do primeiro-ministro ao apelidar determinados médicos que estiveram no Lar de Reguengos de Monsaraz (não toda classe médica, como muitos quiseram fazer passar) como covardes, estão agora sujeitos a ver as suas conversas em "off" com jornalistas escrutinadas, divulgadas e passadas a pente fino. Não está em causa o mau tom, o desnecessário desabafo ou a má têmpera de António Costa. Está em causa que, na ausência de ilícito criminal ou amplo interesse público, a divulgação de matéria privada é, por natureza condenável, e pode configurar, ela mesma, um crime. Comparar ou querer justificar este episódio com o de Rui Pinto ou com outros "leaks" é risível.
O reacendimento deste fogo é um manual de verdadeiro fogo posto. Não passavam 24 horas e já o bastonário não resistia a enviar uma carta justificativa aos médicos por tão acelerado cachimbo de paz fumado com Costa. Em causa, a alegada discrepância de posições do primeiro-ministro, assertivo no retratamento sobre as suas declarações sobre a covardia dentro da reunião, mas omisso sobre essa mesma questão nas declarações que prestou à Comunicação Social, após as quase três horas do encontro à porta fechada. A questão fundamental já vem de trás e diz respeito à responsabilidade do apoio sanitário aos lares (há forma de não ser partilhada?...). A questão nada acessória é como se podia ter aproveitado o momento para encerrar este problema de vez e se permite deixar uma ferida em aberto.
Não deixem o bastonário ser político, nem permitam ao primeiro-ministro ser médico. Depois do encontro, e sem direito a perguntas por parte da Comunicação Social, Miguel Guimarães presta declarações. Após o que António Costa toma a palavra e faz política, encerrando o contexto na sua geografia. Uma questão de confiança, vem nos livros. Quando se exige clarificação, escreve-se. Quando se fala sobre o assunto, há quem diga de mais ou de menos. E tudo recomeça. Está nos manuais de ciência política e, até porque tratamos de questões de saúde, já descende de Clinton: perante o bastonário da Ordem dos Médicos, Costa fumou mas não inalou.
Há covardes e covardia em todos os territórios da humanidade e, ainda que secreta ou veladamente, em cada um de nós ou naqueles que se autoproclamam heróis. Preocupa-me, isso sim, que partamos para uma nova fase de contingência global a 15 de setembro sem uma definição operacional clara sobre a responsabilidade sanitária nos lares. E que se tenha perdido esta oportunidade de, à boleia de um "fait-divers", esclarecer a questão. Pelo contrário, parece que a dose de medicação aplicada não foi suficiente. Mais uma dose, se faz favor. Para prescrição médica, foi curto. Para solução política, deficiente.
Artigo publicado no Jornal de Notícias, 28 agosto 2020.
