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Robin dos bosques de cabeça para baixo

Porque é que alguém que tem um calote de 38 milhões de euros se acha no direito de ameaçar os beneficiários da ADSE com o fim das convenções?

Os grandes grupos privados da saúde devem 38 milhões de euros aos contribuintes da ADSE. As contas foram apresentadas e são públicas. A Procuradoria-Geral da República confirma. Não pagaram. Não querem pagar. Ameaçam com o fim dos acordos estabelecidos se “tiverem mesmo” que pagar. O que se chama a isto? É um calote! Há mais alguma classificação possível?

Claro, como qualquer caloteiro a quem foi descoberta a careca, Salvador de Mello e compagnons de route desdobram-se em mil explicações, processos em tribunal, contestações e denúncias ao esquema de faturações da ADSE. Mas não deixam de ser, por um segundo que seja, aquilo que de facto são: caloteiros! Não contentes em serem caloteiros organizaram-se em cartel para pressionarem a ADSE a “perdoar-lhes” a dívida sob pena de deixarem sem cobertura os 1.200.000 beneficiários do maior subsistema de saúde português!

Ah mas estes não são uns caloteiros quaisquer! Estamos a falar do sector da economia portuguesa que tem sido mais consistente nas últimas décadas. Cresce sempre, apesar de todas as crises e todas as dificuldades que o país possa atravessar. Em 2017, José de Mello Saúde e Luz Saúde cresceram, respectivamente, 8,7% e 6,7% e juntos valem mais de 1.100 milhões de euros. Já em 2018, o sector privado da saúde registou um recorde de faturação em todos os grandes grupos. Há mais consultas, mais cirurgias, mais camas e mais convenções. Por isso, estes não são uns caloteiros quaisquer. Não, não! São caloteiros milionários!

E a quem roubam os caloteiros 38 milhões de euros? À ADSE, um subsistema que tem tido pequenas margens de lucro nos últimos anos mas cujo ritmo de aumento das comparticipações deixa antever dificuldades de sustentabilidade num futuro próximo! E quem é a ADSE? É seguramente uma grande heterogeneidade de gente. Mas são também muitos milhares de funcionários do Estado com ordenados miseráveis. São os assistentes operacionais do meu hospital que recebem pouco mais de 600€ por mês. Gente a quem a ADSE permitiu comprar óculos para os filhos ou leva-los ao dentista, sem que o orçamento familiar tenha sofrido um rombo descomunal. Talvez muitos tenham comprado os livros da escola com essa poupança! São estes a quem os caloteiros milionários agora querem roubar 38 milhões de euros!

Ricos a roubarem os pobres. Aliás, milionários a roubarem trabalhadores. Uma espécie de Robin dos Bosques mas ao contrário!

Mas há quem diga que ladrão uma vez, ladrão para sempre! Na verdade não é só à ADSE que os milionários caloteiros esmifram as entranhas. Em 2015, 51% dos custos totais dos grupos privados da saúde foram pagos pelo Estado (mais de metade, note-se bem). Através das várias convenções que o Estado tem que fazer porque o SNS não chega para tudo. São 554 milhões de euros que saem dos bolsos dos contribuintes diretamente para os cofres dos caloteiros milionários, dos quais 294 milhões vieram da ADSE. O caloteiro milionário não só rouba a ADSE, como vive às custas de todas nós!

Se fosse só dinheiro, já era mau o suficiente, mas o caloteiro milionário rouba mais: rouba profissionais de saúde! A quem paga, claro está, com o dinheiro que lucra das convenções com o Estado. E rouba também cirurgias – só no ano passado os cheques-cirurgia aumentaram em 76%. No total, ao passo que as cirurgias nos hospitais da rede pública cresceram 2%, as cirurgias convencionadas com os privados cresceram 52%. Com tanto roubo não admira que o negócio vá bem: só em investimentos atualmente em execução por estes grupos privados, estão enterrados 500 milhões de euros.

António Costa afirmou que irá negociar (de forma musculada, seja lá o que isso significa) com os grupos privados, a propósito dos 38 milhões de euros em dívida. Mas eu pergunto: o que há para negociar com caloteiros? Há uma dívida, paguem-na.

Resta apenas uma pergunta: porque é que alguém que tem um calote de 38 milhões de euros se acha no direito de ameaçar os beneficiários da ADSE com o fim das convenções? Insensibilidade social? Falta de auto-crítica? Maldade pura? Só há uma resposta que interessa: porque podem! Porque sabem que o SNS enfrenta dificuldades enormes. Porque têm noção que a rede pública não será capaz de absorver, de um momento para o outro, mais de um milhão de pessoas. Porque tiveram e têm a conivência de quem governa o Estado que esgana o SNS para que a sua insuficiência seja a riqueza destes parasitas.

E com um SNS cronicamente subfinanciado e à beira do abismo, com milhares de pessoas sem acesso a consultas ou cirurgias, pressionar a ADSE só tem vantagens. Há um evidente “bluff” nesta ameaça dos grupos privados: nenhum deles quer perder os 300 milhões de euros que a ADSE lhes dá anualmente. Mas pensando a longo prazo, estes caloteiros sabem que se se quebrarem os acordos, os beneficiários da ADSE com mais possibilidades económicas irão trocá-la por seguros privados de saúde que são mais frágeis na negociação de preços e, por isso, dão mais garantias. De fora e prejudicados ficarão os mais pobres da ADSE.

Não precisamos de imaginar “o que seria” se a medicina privada tivesse mais poder e espaço no nosso país, com este episódio do calote milionário à ADSE. Porque o assalto já está em curso há muito tempo e faz-se em todas as frentes! Contra um calote não há negociação possível, só resta uma saída: boicote! Expulsa-se o caloteiro do SNS, acabando com as PPP da saúde e financia-se o SNS ao ponto de, no menor tempo possível, ele não precisar de convencionar mais nada com o caloteiro. Até gostava de ver como iria o “mercado da saúde” safar-se sem o Estado!

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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