A revolta dos coletes amarelos ou a França de baixo contra as elites

porCristina Semblano

16 de dezembro 2018 - 10:50
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O movimento dos coletes amarelos em França é um movimento de revolta colectiva contra a classe dirigente incarnada por Macron por parte de uma franja da população que se sente injustiçada por aquela.

Preze embora a análise do poder político macronista e da classe jornalística que maioritariamente lhe presta vassalagem, preze embora a opinião veiculada por parte não descurável das esquerdas bem pensantes, o movimento dos coletes amarelos em França é um movimento eminentemente político e popular. O facto de não ser rotulado de forma partidária, sindical ou outra, de ter começado espontaneamente e de ser proteiforme, em nada lhe retira o carácter político: o de um movimento de revolta colectiva contra a classe dirigente incarnada por Macron por parte de uma franja da população que se sente injustiçada por aquela.

Essa franja é a das classes populares rurais das zonas despovoadas, desindustrializadas, abandonadas pelo Estado que lhes foi retirando pouco a pouco, metodicamente, os serviços públicos: classes que não têm a cultura do protesto mas a quem mais nada resta fazer senão protestar já que a escolha por vezes " é entre utilizar o carro para ir trabalhar, ou comer".

Que o poder macronista cujo programa e acção estão nos antípodas da ecologia, preze embora as narrativas discursivas contrárias, faça pagar aos mais fracos os custos de uma política em favor das multinacionais e das classes abastadas, encapotada de reconversão ecológica e acompanhada de um discurso moralisante, é inaceitável.

Mas esta não foi a única razão que levou ao levantamento de barragens um pouco por toda a França, desde já severamente reprimidas pelo poder que mobilizou o seu arsenal repressivo, num País onde o neofascismo de Estado é cada vez mais o garante do neoliberalismo desenfreado.

O aumento do preço do gasóleo foi, com efeito, por assim dizer, a gota de água que fez transbordar o copo de água do descontentamento de classes abandonadas e que se debatem sem cessar com a diminuição do poder de compra.

Nesse sentido, o movimento dos coletes amarelos é congregador de solidariedades bem mais vastas, como o atesta o apoio massivo que lhe é testemunhado pela população francesa em geral (para cima de 80% segundo as sondagens) e o alargamento do leque das reivindicações, que da supressão da taxa de gasóleo que o despolotou, se alargou ao poder de compra em geral, com a exigência de aumento do salário mínimo e das pensões de reforma, ou de uma moratória sobre a desactivação de linhas ferroviárias...

O que os cartazes dos manifestantes colocam em contraponto destas reivindicações, e, desde logo, o restabelecimento do imposto sobre a fortuna, suprimida pelo actual poder no que ao capital mobiliário diz respeito, é simbólico do seu grau de politização, ou seja, da consciência que existe do facto de que as prendas que o Estado dá aos ricos são financiadas através do despojo das classes populares. Neste sentido, o aumento da taxa de gasóleo foi apenas mais um. “É preciso que o Estado deixe de vir buscar aos nossos bolsos o pouco dinheiro que ganhamos”, dizia um colete amarelo numa das muitas barragens erguidas ontem na província.

O movimento dos coletes amarelos não é, por conseguinte, um movimento anti-impostos, mas um movimento que nasceu da revolta das classes populares que o Estado abandonou. Como o escreveu o historiador Gérad Noiriel há dias, não é por acaso que esse movimento partiu das comunidades rurais mais desertadas pelos serviços públicos.

Em vez de responder com a arrogância peculiar que o caracteriza, a de um banqueiro-presidente, protector da França da finança, das multinacionais e das elites, E. Macron devia ouvir a França profunda dos coletes amarelos à qual se juntou a França da periferia da capital, num grito que cada vez mais se amplifica : Macron demissão.

Responder a esse grito com discursos pseudo-ecológicos ou posturas de acrescida repressão (como a que consistiria em decretar o estado de urgência), em nada contribuiria para resolver o que constitui o problema explosivo da sociedade francesa: a disparidade obscena das desigualdades.

Mas se o Presidente Macron, devia ouvir o grito dos coletes amarelos, também o deveria ouvir o conjunto das forças sindicais progressistas e da esquerda de emancipação. O pretexto de que haveria militantes de extrema direita entre os coletes amarelos não pode servir de desculpa para praticar a política da cadeira vazia ou do apoio mitigado.

Primeiro, porque esses elementos são isolados. Segundo, porque o lugar daquelas forças é ao lado das classes populares e das suas justas reivindicações: abandonar os coletes amarelos à sua sorte é adoptar a atitude elitista do poder (coitados, eles não percebem) e, ao mesmo tempo, fazer o papel da direita extrema que não perde nenhuma ocasião para instrumentalizar o descontentamento popular em benefício dos seus funestos desígnios.

Acresce dizer que tal instrumentalização tem sido facilitada pela atitude de parte não descurável das forças ditas de emancipação, incapazes de apresentar alternativas credíveis ao projecto neoliberal, de que incorporaram, inconscientemente, alguns dos mais falaciosos conceitos, como o espelha a alegre confusão entre europeísmo e internacionalismo, livre-câmbio e multiculturalismo, protecionismo e xenofobia.

Artigo publicado em expresso.pt a 15 de dezembro de 2018

Cristina Semblano
Sobre o/a autor(a)

Cristina Semblano

Doutorada em Ciências de Gestão pela Universidade de Paris I – Sorbonne; ensinou Economia portuguesa na Universidade de Paris IV -Sorbonne e Economia e Gestão na Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle
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