Se procuravam a unanimidade, os bispos portugueses conseguiram-na: o que (não) anunciaram na sua conferência de imprensa sobre o relatório da Comissão Independente sobre os abusos sexuais no âmbito da Igreja mereceu a reprovação unânime de crentes e não crentes. Foi-lhes unanimemente reprovado o estilo e, muito mais que o estilo, foi-lhes unanimemente reprovada a falta de coragem, de humildade e de capacidade de transfiguração que fez com que o estilo tenha sido aquele.
Onde se exigia primado absoluto da compaixão concreta com as vítimas, houve razão burocrática e legalista; onde se exigia assunção inequívoca de responsabilidades, houve bolas para canto; onde se exigia todo o arrojo, houve toda a retração; onde se exigia arrependimento pelo pecado coletivo, houve retórica de advogado de defesa; onde se exigia coerência com a crítica ao relativismo, houve relativismo acrítico.
Este tinha de ser o momento do gesto profético. De um gesto de rutura simples e desarmante, como o de um Papa que se expôs a todas as críticas, indo a Lampedusa e a Lesbos denunciar o pecado da insensibilidade europeia para com o desespero dos migrantes e romper com todos os protocolos ao levar consigo 12 refugiados sírios para o Vaticano. Algum bispo português foi a Odemira ou à Mouraria com o mesmo espírito de humildade e sentido interpelador?
Não faltou aos bispos portugueses nem tempo nem informação para prepararem uma resposta redentora ao pecado horrendo instalado há tanto tempo. Os bispos conheciam bem — tinham obrigação de conhecer — o modo como as igrejas de outros países reagiram a circunstâncias idênticas (dizer que indemnizar as vítimas é insultuoso para elas é um escapismo que insulta as associações de vítimas de vários países que se bateram por essa prática e as igrejas, como a norte-americana, que a incluíram no conjunto de formas de reparação das vítimas). E sabiam, todos sabíamos, que por factos muito menos gravosos que os revelados no relatório da Comissão Independente, houve sonoras resignações noutros países.
A centralidade conferida à defesa da instituição não teve comparação com o peso dado à reparação das vítimas e à reconciliação com a sociedade. E isso não foi lapso de comunicação, é mesmo o seu entendimento
Todavia, o que ficou patente na reação dos bispos não foi falta de preparação, mas antes que esta abordagem tíbia, defensiva, tão pouco expressiva da amizade cristã para com as vítimas, foi exatamente a que foi querida e preparada. A centralidade que entenderam conferir à defesa da instituição não teve comparação com o peso que entenderam dar à reparação das vítimas e à reconciliação com a sociedade. E isso não foi lapso de comunicação, é mesmo o seu entendimento. A internalização do que vem a seguir dentro das paredes da instituição — uma equipa no âmbito da comissão coordenadora das estruturas diocesanas de proteção de crianças e jovens — mostra como a Comissão Independente foi um parênteses, um intervalo de exame externo que causou desconforto ao poder instalado — porque foi nele, e não nas estruturas eclesiais que as vítimas confiaram — e que o poder instalado quer agora reverter.
Tristemente, esta posição dos bispos faz com que essa desconfiança natural das vítimas nas estruturas da instituição que encobriu os seus algozes se prolongue agora na desconfiança de toda a sociedade para com a Igreja. E, se não pode contar com os bispos para um combate totalmente determinado contra estas práticas abjetas, então o país adote ele próprio — como sucedeu em França — os caminhos dessa determinação, criando uma nova comissão independente para prosseguir, com toda a independência, o trabalho da anterior. Porque essa é a responsabilidade da democracia.
Artigo publicado no jornal "Público" a 8 de março de 2023