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Rescisões com justa causa
"Wake up", gritavam a pulmões de oxigénio os Arcade Fire no seu disco de antecâmara hiperbárica, "Funeral". Eram metros a fundo. A partir desse momento, milhares como eu a respirar em golpadas de ar sôfrego, juvenil mas sem borbulhas, a certeza de que até aguentávamos perder muito se pudéssemos lutar para ganhar de volta tudo a que temos direito. Impossíveis, nenhuns. E nenhuma bíblia néon nos retirou da chama. Éramos do grupo daqueles que tinham visto e não só ouvido falar. Deambulámos pelos subúrbios. Éramos do bando do concerto de 2005 em Paredes de Coura. Não era um simples apontamento de vida. Fomos a versão em grupo de Jon Landau a assegurar que tínhamos visto o futuro do "rock and roll", um futuro sem patrão, desta vez. E jurávamos a pés juntos que seria assim para sempre. Tínhamos boas razões para acreditar. "Something filled up/ My heart with nothing". À sombra de um concerto irrepreensível e com corações a explodir junto às grades, foi sob o signo de uma desinteressante bola de espelhos, anónima e funcional, que assinei - 13 anos depois - a minha rescisão com justa causa com os Arcade Fire. A redenção chegou, pouco antes, numa monstruosa sessão espírita dos Big Thief. Adrianne Lenker, a espetar facas no coração, respiração subtil e com a rudeza de um abre-latas. O poder sibilante das sílabas e a descarga emocional. Vemo-nos daqui a 13 anos?
A música raramente está ausente da página 2, mas ouve-se bem mais escondida. As opiniões, mestres de cerimónia, podem desancar virulentamente, logo afiadas pelo genérico de apresentação. "I want my MTV", cantava Sting com direito a cartão de visita em "Money for Nothing". A força do vídeo, eis a prova de vida. O cartão de visita de Mário Centeno apagou o título de ministro das Finanças e realçou a bold a nomenclatura de presidente do Eurogrupo. Centeno preferiu rescindir com a visão crítica ao intervencionismo da troika em Portugal, incarnou Pedro Passos Coelho e sublimou-o. Ao optar por tecer loas e encómios ao programa de resgate na Grécia, deu razão ao coro grego que não pressagiava nada de necessariamente positivo pela portugalidade do cargo. A rescisão com justa causa não se inscreve no cartão de cidadão. Mas está lá, indelével, porque ninguém acredita que Centeno pense coisa diferente daquela que cogitava anteriormente quando nos fazia acreditar que era razoável valorar o peso da vida das pessoas nas decisões económicas. Desnecessário mas previsível. Aqui foi só preciso esperar 3 anos. Poupámos uma década à crença.
Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 22 de agosto de 2018
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