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Relação, responsabilidade e paz: o legado de pensamento e de vida de Luís Moita

Luís Moita escolheu o lado do cuidado e testemunhou-o não só no seu pensamento mas na qualidade da relação que cultivou com cada um dos que com ele se cruzaram.

Precisamos muito de gente decente que nos ajude a pensar com decência. Precisamos muito de gente arrojada que nos ajude a pensar com arrojo. Mas, mais que tudo, precisamos muito de gente decente e arrojada que nos ajude a viver com decência e com arrojo. É por isso que a morte de Luís Moita nos priva de um suporte tão importante não só para a vida pessoal de muitos, mas para a vida coletiva de todos.

Neste tempo de rótulos apressados que nos arrumam em gavetas compartimentadas, o mais fácil é pôr Luís Moita na gaveta dos “católicos progressistas”. Foi-o, bem o sabemos. Dos mais notáveis e influentes. Mas esse rótulo apagaria muito do que foi o pensamento e a intervenção de Luís Moita. E, no entanto, talvez ele não se importasse de ser visto assim, por, para ele, isso supor precisamente uma irradiação, um contágio forte, de todos os campos da sua ação pública e da expressão do seu pensamento pelo primado da fraternidade amorosa como guia da nossa condição relacional. Como padre, como ativista antifascista e anticolonial, como pensador da Ética, como militante da democracia, como académico das Relações Internacionais, Luís Moita foi sempre o mesmo cultor desse primado, com uma coerência rara e com uma elevação ainda mais rara. 

Na sua última lição na Universidade Autónoma de Lisboa, em julho de 2019, dedicada precisamente ao conceito de relação, Luís Moita havia de mostrar como a dimensão relacional é um continuum que estrutura toda a realidade: “A ideia de relação é um conceito chave que pode atravessar todos os nossos campos de saber, desde as partículas subatómicas até ao sistema internacional e à humanidade no seu conjunto, e é algo que nos faz compreender melhor a realidade e, por outro lado, nos responsabiliza face a ela”. Para ele, a ética é, pois, a gramática da relação decente. Num texto particularmente luminoso de 20021, situou o que chamou de “dramatismo da ética” nessa escolha entre o construirmo-nos e o destruirmo-nos uns aos outros: “O processo relacional, que poderia ser humanizante, por vezes torna-se fator de desumanização. A ética confronta-nos com este enigma que é o de podermos estragar-nos uns aos outros. (…) O espaço da ética é o território da liberdade, da possibilidade de escolha, da capacidade de dar respostas. A ética não é uma higiene, não é uma estética. É o desejo e o imperativo da qualidade dos valores presentes na relação humana”. Relação e responsabilidade – foi esse o traço que atravessou todo o arco da sua vida e do seu pensamento. Luís Moita escolheu o lado do cuidado e testemunhou-o não só no seu pensamento mas na qualidade da relação que cultivou com cada um dos que com ele se cruzaram.

Voltemos então ao rótulo de católico progressista. Conta Jorge Wemans2 que, pouco tempo antes de morrer, Luís Moita lhe manifestou a sua insatisfação com a “canga doutrinal” que a Igreja Católica criou ao longo dos séculos e que obscurece a divina rebeldia de Jesus3. Essa canga, dizia Luís Moita, alimenta “um discurso casuístico sobre todos aspetos da vida” e põe na penumbra a única razão de ser da Igreja: “fazer as pessoas felizes”, para que “cada um viva em plenitude”. Foi esse o progressismo do católico Luís Moita. Desde logo, do padre Luís Moita. O que o fez ser progressista assim foi uma escolha (ética, pois claro): entre a fidelidade ao primado da fraternidade amorosa bebido em Jesus de Nazaré e o quietismo subserviente a uma estrutura hierárquica anquilosada e intimamente comprometida com o fascismo e o colonialismo, Luís Moita escolheu aquele e repudiou este. Foi isso que o colocou no centro do movimento que se bateu publicamente pela resignação do cardeal Cerejeira, na ebulição teológica do Seminário dos Olivais e que o levará depois a ser um dos dinamizadores maiores das vigílias pela paz na Igreja de S. Domingos, na passagem de 1968 para 1969, e da Capela do Rato, na passagem de 1972 para 1973. Foi isso que o fez abandonar o sacerdócio sem nunca abandonar a convocação cristã à libertação solidária. 

Talvez as duas vigílias sinalizem a assunção da preocupação pela paz como concretização mais forte da gramática ética da relação. Não é outro o sentido do ativismo anticolonial de Luís Moita. Não se pode compreender o seu compromisso anticolonial desligado do que tinha sido a sua trajetória como crente e como padre. Do Boletim Anticolonial – de que foi responsável com Nuno Teotónio Pereira – à criação e afirmação do CIDAC (Centro de Informação e Documentação Anticolonial) entre 1974 e 1989, passando pelo seu empenhamento na Fundação Lelio e Lisli Basso para os Direitos dos Povos, foi o registo ético da paz, feita tanto de silêncio das armas como de autonomia dos povos e de justiça social, que fundamentou a luta anticolonial de Luís Moita. 

E foi o mesmo alicerce triangular – relação, responsabilidade, paz – que animou toda a sua paixão universitária pela área de Relações Internacionais, de que veio a tornar-se nome de proa em Portugal, a partir da década de oitenta. Os estudos da paz e da guerra – quer no ensino “civil” quer nas escolas superiores militares – permitiram-lhe testar os limites de validade do imperativo ético da paz. A política internacional é lida pelas escolas tradicionais da disciplina de Relações Internacionais, como um terreno regido canonicamente pela primazia dos interesses sobre os valores. Sem cair nas armadilhas do cosmopolitismo dos triunfantes e do institucionalismo liberal, Luís Moita enfrentou o desafio de pensar a política internacional como um campo de escolhas éticas distanciando-se da argumentação que subalterniza os valores – melhor dizendo, subalterniza alguns valores – na arena internacional, contrapondo-lhe um olhar normativo, assumidamente comprometido com horizontes de paz e de justiça global. “Os valores e os interesses estão muitas vezes em choque, mas não nos é lícito desistir de os fazer convergir”, escreveria em 20094. Por isso, a política internacional é, no pensamento de Luís Moita, um território particularmente desafiante de em que se joga a afirmação da nossa responsabilidade como comunidade humana e, por isso, das escolhas que fazemos também nessa escala: a paz ou a guerra, a dominação ou a autodeterminação, a rede ou a pirâmide, os direitos ou o mando, a nossa casa comum ou o império.

A escolha de sermos comunidade foi sempre, para ele, a nossa forma de correspondermos à anterioridade ontológica do plural sobre o singular. “Nós existimos uns por causa dos outros, é o tecido das nossas relações que nos constitui como pessoas. Antes de sermos indivíduos, somos participantes de uma comunidade que nos faz ser nós próprios”, sustentou na sua última lição. Uma lição valiosa e corajosa, neste tempo de exaltação do individualismo e das suas expressões bélicas em todas as escalas. Contra essa legitimação da relação destruidora, precisamos muito de gente decente e arrojada que lhe contraponha a relação criadora. É por isso que nos fará tanta falta o Luís Moita. 


Artigo publicado no Jornal de Letras, Artes e Ideias a 8 de fevereiro de 2023.

Notas:

1 “As condições éticas da intervenção social”, comunicação ao Congresso da Associação Portuguesa de Serviço Social.

2Luís Moita (1939-2023): ‘Para que as pessoas sejam felizes’”, Sete Margens, 28.1.2023

3 José Veiga Torres, Desafio aos cristãos e a outras gentes. Coimbra: Lápis de Memórias, 2018

4 “Ética e política: uma relação problemática”, Colóquio Ética e Mundo Contemporâneo, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (16.10.2009 ) 

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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