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Regularização dos precários: princípio do fim da ilegalidade

Foi esta sexta-feira aprovada a lei que estabelece a regularização dos precários do Estado. Esta é uma decisão marcante, que pode fazer história ao trazer um vínculo estável para dezenas de milhares de pessoas.

Foi esta sexta-feira aprovada a lei que estabelece a regularização dos precários do Estado. Mais de 20 anos depois do último processo deste tipo, depois de se terem multiplicado todo o tipo de modalidades de trabalho precário na Administração Pública e no setor empresarial do Estado (bem como no setor privado, aliás), esta é uma decisão marcante, que pode fazer história ao trazer um vínculo estável para dezenas de milhares de pessoas. Os últimos meses foram um desafio para as organizações de precários, para os sindicatos, para o conjunto da Administração, para o Governo, para o Parlamento e para os partidos à esquerda.

Afinal, quem são os precários?

Definir conceitos não é apenas um exercício de terminologia. É uma escolha política com consequências concretas. Por isso são tão relevantes as alterações, primeiro na portaria e agora na lei, que alargaram o seu âmbito. Numa primeira fase, garantiu-se que do “perímetro” do Estado faziam parte os falsos outsourcings e a falsa intermediação. Agora, clarificou-se que as universidades fundação são Administração central indireta, que os “falsos estágios” devem ser considerados (embora a formulação do PS sobre este ponto seja demasiado restritiva), que o horário completo não pode ser critério de exclusão. Mas para além do que ficou na lei, o processo trouxe uma conquista de outra natureza: a visibilização, no espaço público, de vários grupos de precários (dos técnicos especializados da educação aos trabalhadores dos programas regionais, por exemplo) que, sendo indispensáveis ao funcionamento dos serviços, pareciam esquecidos.

As falhas da administração e as dificuldades dos sindicatos

Este processo revelou outras coisas. Primeiro, que o estatuto laboral de quem trabalha para o Estado está completamente fragmentado, com dezenas de situações e condições diferentes, muitas delas irregulares e ilegais. Segundo, que muitas destas pessoas são autênticos heróis e heroínas porque asseguram o funcionamento dos serviços públicos (do apoio nas escolas e hospitais às candidaturas do país a fundos estruturais ou a programas científicos) sem nunca terem tido um contrato como mereciam. Em terceiro lugar, que a generalidade dos dirigentes máximos ficaram muito aquém do que se lhes exigia em termos da participação e identificação destas situações. Em alguns casos, não o fizeram por desconhecimento e inércia, noutros propositadamente, tendo até desincentivado os trabalhadores a requererem a sua integração (o que deve conduzir, se o Governo for consequente, a processos disciplinares). Por isso mesmo, um processo que fosse comandado pelos dirigentes e limitado às listas que cada serviço fizesse teria sido uma péssima solução. O caso de alguns reitores é particularmente chocante: foi das Universidades que chegaram mais relatos de intimidação de trabalhadores e de pareceres negativos à regularização dos precários.

Os sindicatos também enfrentaram dificuldades. Estiveram presentes nas Comissões de Avaliação Bipartidas (CAB), que tinham como função identificar os trabalhadores a integrar, e apresentaram propostas. Mas apesar do empenho que puseram em convencer os trabalhadores a fazerem requerimentos, tanto quanto se sabe desperdiçaram o que era provavelmente o seu maior poder nessas comissões e junto dos dirigentes: entregarem as suas próprias listas de precários a serem integrados, organismo a organismo, serviço a serviço.

Finalmente, os grupos de precários (formadores do IEFP, bolseiros de investigação, técnicos especializados, Precários do CHO, trabalhadores dos programas operacionais, entre muitos outros) tiveram o mérito de trazer para o espaço público condições laborais especificas de diferentes setores e lutaram por soluções que respondessem a essas situações. Por serem informais, não tiveram representação nas CAB, o que lhes retirou capacidade de influência e de atuação.

Vai haver despedimentos?

Este processo visa propor, a quem seja identificado como estando em situação irregular, um vínculo estável por via de um concurso. É pois ilegítimo e absurdo dizer-se que esta lei pode promover “despedimentos”. Um despedimento é uma situação em que a pessoa que trabalha fica sem emprego. Ora, o objetivo deste processo é garantir que as pessoas mantêm o trabalho, mas com um vínculo efetivo. É certo que a retórica da Direita, em desespero, foi inventar “despedimentos”. Mas o argumento não é válido nem sério. A ideia de que, para evitar “despedimentos”, o Estado deveria manter vínculos ilegais se estes fossem “mais favoráveis” (o que já revela toda uma visão do mundo do trabalho que tem subjacente uma apologia da precariedade) é contrária à lei geral de trabalho em funções públicas e contrária ao objetivo da regularização. Proteger as pessoas do despedimento não é permitir a manutenção de situações de precariedade, mas erradicá-las. Manter contrários precários em vez de vínculos permanentes não protegeria ninguém, só prolongaria no tempo a fragilidade do seu estatuto, expondo-as ao despedimento posterior.

O que ficou por fazer?

No Parlamento, Bloco, PS e PCP (a Direita optou por votar contra o diploma e não apresentar quaisquer propostas) melhoraram e corrigiram a proposta do Governo. Clarificou-se o âmbito da lei, criou-se um mecanismo de proteção contra o despedimento durante o processo de regularização, obrigou-se o Governo a regras de transparência sobre o trabalho das CAB, definiu-se prazos para a regularização, esclareceu-se o modo de abranger as autarquias, encontrou-se uma solução para os tempos parciais. Mas há aspetos que deviam ter sido acautelados antes (o Governo devia ter prorrogado os contratos, logo no início do processo, até à sua regularização, como fez a lei Guterres de 1996) e há soluções que deviam ter sido adotadas agora pelo Parlamento, mas foram chumbadas (pelo PS, PSD e CDS). Por exemplo? Garantir que as Universidades têm a verba para pagar aos precários integrados; soluções para trabalhadores que não encaixam nas carreiras que existem e que têm de ver o seu rendimento salvaguardado (como os bolseiros que fazem gestão de ciência); permitir que os técnicos que trabalham em programas operacionais fiquem vinculados às suas Comissões de Coordenação Regional (impedindo qualquer tentação centralizadora futura); a inclusão de muito mais formadores do IEFP (designadamente os que trabalham a tempo parcial, que ficam excluídos deste processo).

Vigilância e auto-organização

Ao longo de meses, deram-se muitos passos. Muitos outros terão de ser dados. Há ainda situações ambíguas a serem esclarecidas, pareceres de dirigentes que terão de ser contestados, há a vigilância sobre as Comissões de Avaliação, a exigência de que o processo no Estado central não se arraste no tempo e que as autarquias o iniciem quanto antes.

O mais importante até agora foi provavelmente o conhecimento e a auto-organização. Informação e reconhecimento são armas poderosas. Se a elas se somar a auto-organização, as sementes deste processo transportam-se para o futuro. Agora que as pessoas se juntaram para fazer valer os seus direitos, por que haveriam de ficar por aqui?

Artigo publicado em expresso.sapo.pt a 14 de outubro de 2017

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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