Regionalização, a grande reforma adiada

porMiguel Guedes

10 de julho 2022 - 15:49
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Ninguém referendou a adesão à moeda única, ninguém referendou a adesão de Portugal à CEE, ninguém referendou a Constituição. Porque se obrigam, agora, a referendar um princípio dessa mesma Constituição? O objectivo é evidente.

A penalização por permitirmos que sucessivas gerações de políticos fujam de um desígnio constitucional com 46 anos é encontrarmos agora um país que, enquanto faz de conta que descentraliza, é cada vez mais obsessivo na manutenção de um centralismo serôdio, empobrecedor para o efeito reprodutivo do investimento e catalisador das maiores assimetrias entre regiões ou entre o litoral e o interior. A regionalização que, no calendário e programa eleitoral do Governo, seria objecto de referendo em 2024, tem sido agitada como o corolário do processo de descentralização em curso, já suficientemente trôpego para que se acredite que vai correr bem. E a nova liderança do PSD coloca-se como parte do habitual "bloqueio central".

Depois de António Costa e Marcelo assegurarem que este seria finalmente o tempo de se fazer caminho para a regionalização, eis que o reformista Luís Montenegro se encolhe perante a maior reforma do Estado. Em pleno congresso do PSD, afirma não ser "o momento". E à saída da audiência com o PR, reafirma a sua oposição ao referendo, dizendo querer focar-se no "essencial" para a vida dos portugueses. Ou seja, o líder da oposição considera a maior reforma do Estado, desígnio constitucional, como uma questão menor, não essencial. O PR apressa-se a dizer que assim fica "muito difícil". E o PS com a decisão de avançar entre mãos, refém da responsabilidade de poder e dever cumprir o programa político que lhe assegurou uma maioria absoluta.

A responsabilidade de tomar decisões está, agora, num território do qual nunca deveria sair, o político. O referendo que tramou a coesão territorial do país em 1998, quando o "não à regionalização" obteve cerca de 60% dos votos, foi uma imposição de Marcelo, anti-regionalista convicto. A viabilização de um novo referendo que quase ninguém quer é um engodo no actual quadro constitucional que Marcelo erigiu. É misterioso que se exija um referendo (que só seria vinculativo se nele participassem mais de 50% dos eleitores) para uma questão que pode e deve ser decidida no âmbito legislativo.

O centralismo é um "cortejo de ineficiência" de "efeitos malignos", como salientava Luís Braga da Cruz, ex-ministro da Economia de Guterres: ninguém referendou a adesão à moeda única, ninguém referendou a adesão de Portugal à CEE, ninguém referendou a Constituição. Porque se obrigam, agora, a referendar um princípio dessa mesma Constituição? O objectivo é evidente. O arco do poder não está disposto de abdicar de uma fatia do bolo em nome da reorganização do Estado, das políticas de proximidade e compreensão das populações para efectivo planeamento e execução no território. Basta olhar para o crescimento económico dos países onde existem governos regionais com eleições directas (a esmagadora maioria dos países da UE) e comparar. Exige-se clarividência e coragem. Em Portugal, assistimos, há décadas, a este objectivo desinteresse pela filigrana do país que nos condena às maiores assimetrias, desigualdades e ao contínuo empobrecimento.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 8 de julho de 2022

Miguel Guedes
Sobre o/a autor(a)

Miguel Guedes

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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