As recentes trocas de reféns e cadáveres entre o Hamas e Israel tornaram impossível ignorar o óbvio: para os meios de comunicação ocidentais, há sofrimento que conta e sofrimento que não conta. Este enviesamento sistemático da nossa comunicação social é tão preocupante quanto previsível.
Nos últimos dias, o Hamas libertou os últimos vinte reféns que permaneciam vivos em Gaza. É fácil descobrir os seus nomes e fotografias — especialmente os dos três portugueses, pelos vistos ainda mais importantes. Como parte do acordo, Israel libertou dois mil palestinianos. Destes, mil e setecentos tinham sido detidos nos dois últimos anos e estavam presos sem qualquer acusação e sem qualquer contacto com as famílias. O Ocidente nunca pareceu importar-se.
A diferença de tratamento não se fica pelos reféns vivos. No momento em que escrevo, vinte cadáveres israelitas permanecem em Gaza; oito já foram entregues pelo Hamas. Os nomes circulam em todos os jornais, as fotografias repetem-se, as famílias têm rosto. Em sentido inverso, quarenta e cinco cadáveres torturados foram devolvidos — os primeiros de um total de quatrocentos e cinquenta mortos em prisões israelitas. Destes, quantos nomes conhecemos? Quantos rostos? Dos dois mil e quinhentos que voltaram para Gaza, pouco parece importar-nos quantos chegaram vivos.
Esta absoluta primazia dada às vidas israelitas está longe de ser novidade. No seu livro Vítimas Perfeitas (recentemente publicado em português pela Edições 70), Mohammed El-Kurd retrata sublimemente a atitude ocidental desde os inícios do projeto sionista: só os palestinianos extraordinários — ou vítimas de uma extraordinária violência — têm merecido a nossa empatia. A humanidade da maioria continua sem ser um dado adquirido.
As vítimas israelitas nunca precisaram de provar a sua inocência. Muitas terão servido no exército de ocupação e participado na colonização da Palestina. Outras, como a canadiana-israelita Vivian Silver[1], dedicaram a vida ao ativismo pela paz. Em todos os casos, a humanidade das vítimas sempre foi evidente, inquestionável.
Quanto aos dois mil palestinianos libertados, foram pouco mais que uma nota de rodapé. Apesar de também serem reféns — detidos sem acusação, sem julgamento e vítimas de abusos nas prisões — a palavra estava ausente do léxico utilizado. Estes homens, mulheres e menores anónimos são, aos olhos ocidentais, terroristas até prova em contrário. Há quem nasça humano e quem tenha de o provar, dia após dia.
Apesar do suposto cessar-fogo, Israel continua a matar palestinianos. A fronteira em Rafah continua encerrada[2]. O ministro Ben Gvir ameaçou bloquear toda a ajuda humanitária se o Hamas não devolver imediatamente os restantes cadáveres israelitas. A Cruz Vermelha adverte que encontrá-los demorará semanas. Só neste sábado, a população encontrou cento e trinta e cinco corpos palestinianos sob os escombros. Estimam-se mais dez mil por encontrar. Fazer depender a entrada de ajuda do retorno imediato de vinte cadáveres israelitas — vinte agulhas neste palheiro — é querer perpetuar a fome.
As trocas destes dias revelam a nossa aceitação desta aritmética perversa: vinte reféns valem mais que dois mil, vinte cadáveres — entre dez mil nos escombros de Gaza — justificam a continuação da punição coletiva.
Enquanto aceitarmos que há reféns de primeira e reféns de segunda, que há cadáveres que contam e cadáveres que não, enquanto aceitarmos a ocupação e o apartheid, nenhum cessar-fogo nos absolverá da cumplicidade.
Notas:
[1] Vivian Silver imigrou para Israel em 1974 e trabalhou durante décadas pelo diálogo entre israelitas e palestinianos. Foi assassinada a 7 de outubro de 2023. A família pediu que a sua morte não servisse de pretexto para mais violência — um apelo evidentemente ignorado.
[2] À hora a que escrevo, as notícias mais recentes, dão conta de que Israel se prepara para abrir a passagem.
