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A rampa ascendente

A despenalização da morte voluntária não é um retrocesso civilizacional mas um avanço. Porque quando é o respeito pela decisão de cada um que é aumentado, a rampa é ascendente, não descendente.

Ao contrário do que defendem os que querem que se mantenha a pena de prisão para quem aceitar o pedido de ajuda à antecipação da morte de um doente terminal em sofrimento insuportável, a despenalização da morte voluntária não é um retrocesso civilizacional mas um avanço. Porque quando é o respeito pela decisão de cada um que é aumentado, a rampa é ascendente, não descendente. Sim, é de aumento da dignidade coletiva que se trata quando se afirmam os direitos contra a o sofrimento que agride o corpo e a consciência de si.

Portugal fez um caminho muito importante, nos últimos anos, na consagração da autodeterminação das pessoas doentes. Foi um caminho com os mesmos inimigos de sempre: o preconceito e o medo. A determinação da sensatez e da liberdade venceu-os e fez possível tornar lei a obrigação de os médicos obterem o consentimento informado dos doentes, a proibição da obstinação terapêutica e as diretivas antecipadas de vontade. Em todos estes passos, foi sempre o alargamento do respeito pela vontade livre e esclarecida das pessoas doentes que esteve em jogo. E, com esse alargamento, foi também o modelo de relacionamento entre médicos e doentes que se foi reconfigurando, de uma relação paternalista ou mesmo dirigista em que os médicos tomam decisões e os pacientes as cumprem de forma submissa para uma relação de muito maior corresponsabilidade com o doente a ter o direito de aceitar ou recusar abordagens terapêuticas. Porquê? Pela única e simples razão de que a vida é daquela pessoa e só ela pode decidir como a viver.

Sobra pois uma pergunta: se é irrecusável o direito de fazermos escolhas decisivas para a nossa vida ao longo dela e se é inquestionável que se tem ampliado o espaço desse direito fundamental no caso de doença, há alguma razão que justifique que fiquemos privados desse direito a escolher e a decidir quando a gravidade do nosso estado de saúde nos empurra para os últimos momentos da vida?

A frase “a morte é o último momento da vida” pode parecer um sofisma vazio. Mas não é. A morte é realmente um momento da vida. O último. E aqueles que escolhem antecipar a sua morte pedem a ajuda de um médico para que essa escolha se faça sem sofrimento não estão a optar de forma niilista pela morte, estão sim a escolher a vida cheia de sentido e de afeto que querem ter no processo de morrer. Estão a recusar que o seu fim de vida seja trucidado por um sofrimento atroz que os desfigura aos seus próprios olhos e dos seus mais próximos e a recusar também o adormecimento físico e relacional que, em geral, vem associado às abordagens paliativas mais duras.

Agora cada deputado/a tem a responsabilidade de decidir se damos um passo mais na rampa ascendente do respeito pela decisão de cada um ou se os direitos param às portas da morte.

Artigo publicado no diário “As Beiras” a 26 de maio de 2018

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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