Rai(v)a política

porCarlos Carujo

13 de maio 2010 - 16:22
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O mediático juiz Garzón pensou em investigar desaparecimentos, abrir valas comuns. Ironia do destino, os fascistas utilizaram as leis da democracia para o suspender e ameaçar.

A guerra civil espanhola começou por ser uma imagem de infância. Estória dos "muito velhos" que contavam como o sangue derramado chegava até às nossas povoações pelos cursos de água, alheio à convenção das fronteiras e a uma certa distância psicológica que teimava separar-nos dos estrangeiros. Na narrativa acabavam esbatidos o mistério encenado do "como escapámos à loucura da guerra" e a suspeição que me assaltava de algum exagero. Ficava apenas um rasto de sangue anónimo e misterioso, mais vivo que qualquer guerra televisionada, como uma ameaça não ficcional. Pronta a jorrar, a guerra era essa imagem bem mais do que a recalcada guerra colonial.

A guerra civil espanhola tornou-se depois memória política. A militância somou então a esta paisagem mental os slogans sangrentos, "viva a morte, morte à inteligência", e nomes como Franco ou Balaguer. A sua cruzada era um rio. Mas somou-lhe também nomes e caras de resistentes, canções e slogans que eram intuitivamente nossos, que nos impunham o dever de nadar contra a corrente das cruzadas assassinas, que nos colocavam de um lado trágico do rio de sangue. O sangue que jorrava como um rio tinha sido o nosso. E Badajoz, que afinal era bem mais perto do que supunha, tornou-se nome de um massacre. Aí o exagero inicial da estória e da memória selectiva reconstruída encontrava uma base factual. E este exagero encontrava-se com a minha tendência para o exagero para fazer a suspeita: e se esse sangue tivesse chegado do lado de cá da fronteira fruto de alguma "caça aos comunistas" em que latifundiários de cá e de lá se juntavam?

Toda esta memória política chocava com uma "Espanha real". Real não no sentido que a monarquia se sentisse nas ruas ou na tv mas no sentido em que se cavava um fosso entre o lugar da memória política e o local tal como se apresentava no vivido. A Badajoz republicana parecia muito longe da pátria dos caramelos e do "Verão Azul". Se por cá o recalcamento apagava a guerra colonial, do outro lado era guerra civil que desaparecia na modernidade democrática espanhola. Como se as democracias recentes precisassem de um recalcamento originário para constituir a sua "normalidade".

A política da transição democrática espanhola enquanto recalcamento da violência fascista fazia-se em nome de uma paz podre e de uma equivalência: teriam sido cometidos excessos dos dois lados, massacres iguais, num empate apagado pela esponja da lei da Amnistia que permitiria que o revanchismo não se tornasse lei. E era como se tivesse sido tudo igual, como se as desrazões pontuais de republicanos fossem o mesmo do que a empresa sistematicamente assassina do franquismo durante e depois da guerra, uma repressão de Estado que, para além das vítimas da guerra, deixou mais de 130 mil "desaparecidos" e muitas valas comuns por abrir, milhares de vidas despedaçadas nas prisões e de crianças roubadas aos pais etc. etc.

O peso imenso da tragédia, a pressão do recalcado, fez com que o rio de sangue finalmente irrompesse pela política quebrando o seu pacto de silêncio. A lei da memória histórica do PSOE foi disso sintoma num país em que estátuas e nomes de ruas lembravam quotidianamente quem tinha efectivamente ganho a guerra e que crimes permaneciam impunes. E o mediático juiz Garzón pensou em investigar desaparecimentos, abrir valas comuns. Ironia do destino, os fascistas utilizaram as leis da democracia, nomeadamente a lei da amnistia que supostamente este estaria a violar, para o suspender e ameaçar. Ironia do destino, o juiz que mais politizou a justiça com a sua pose de justiceiro, via-se agora perseguido por outra politização da justiça. De repente, Garzón ocupou o palco no país em que a lei da amnistia ainda é quem mais ordena. Não se trata da carreira do que cavalga todas as ondas mediáticas. Não foi por ele que o pacto de silêncio se quebrou. Trata-se daquele rio de sangue que está para lá do mediatismo político. Trata-se de uma questão fronteiriça para a esquerda. Quando este rio de sangue volta a ultrapassar a fronteira para o lado de cá, trazido já não pela memória reconstruída dos velhos mas pela reconfiguração de experiências do caudal informativo, vem dissolvido como se fosse uma questão menor. Porque sabemos que não é, sentimo-nos ainda mais raianos. Republicanos porque entranhadamente tricolores.

Carlos Carujo
Sobre o/a autor(a)

Carlos Carujo

Professor.
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