“Radicais” ma non troppo

porAndré Julião

13 de outubro 2023 - 23:21
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Não se assistiu a ninguém a evocar a quarta ou a quinta emenda em Manhattan, não se viram motins em Florença nem o êxodo em Berlim. Barcelona continua a ter as ramblas e Paris a Torre Eiffel. E dizem que Dallas ainda tem o J.R.

Se será já amplamente consensual que temos um problema grave com a habitação em Portugal, as eventuais medidas para conter a especulação imobiliária que está a fazer desesperar várias gerações estão longe de colher o acordo da maioria.

Tudo o que possa ser apontado para limitar a subida de rendas ou a contenção dos juros das prestações do crédito à habitação é prontamente apelidado de “radical” por quem lucra com a situação ou por quem não tem a mínima intenção de a resolver.

Neste grupo, incluem-se, de uma forma lata, todos os partidos de direita e ainda uma enorme franja do PS, da qual o primeiro-ministro António Costa faz parte. A verdade é que a mensagem tem passado, de alguma forma, para aquela parte do eleitorado que não sente na pele o problema do aumento das rendas ou dos juros.

Temos, assim hoje, um país partido: de um lado os lesados da especulação imobiliária e do BCE, do outro os que não conseguem ver para além do seu umbigo, para quem as regras do “mercado” são uma via-sacra e as taxas de juro uma inevitabilidade como o dia e a noite ou as estações do ano.

Só dessa forma se pode explicar que medidas que noutros países foram consideradas simples e básicas, em Portugal sejam vistas como uma espécie de PREC 2.0.

Os que agora agitam a Constituição com fervor face a propostas como a proibição da venda de casas a não residentes, uma medida tão simples, justa e básica noutras paragens, são os mesmos que vetam toda e qualquer iniciativa que tente colocar a Banca a contribuir para resolver alguns dos problemas para os quais, em muito, ela própria contribuiu.

Portanto, são aqueles que não querem resolver o problema, não sofrem com ele e preferem ver meio mundo na rua do que beliscar a liberal “mão invisível”. A mensagem para esses, que, além de um egoísmo estoico e uma insensibilidade sem precedentes, não conseguem ver o óbvio, são os exemplos que vêm de fora.

Nova Iorque, Florença, Barcelona, Berlim, Quebeque… todos radicais?

Além de Barcelona e Berlim - cidades como Lisboa, exponencialmente afetadas pelos efeitos do turismo em excesso e da gentrificação consequente -, que já avançaram com medidas como a limitação das rendas e a aquisição de habitação para arrendamento acessível, surgem agora outros exemplos, um pouco por todo o mundo.

Sim, porque este é um problema que extravasa as fronteiras de muitos países. Há dias, foi a cidade italiana de Florença que decidiu proibir novos Airbnb no seu centro histórico, suspendendo a abertura de apartamentos turísticos para disponibilizar mais casas à população local.

Radical? Talvez não. Vejamos: em 2016, Florença tinha menos de seis mil apartamentos anunciados no Airbnb. Hoje, tem 14.378. O custo médio das rendas residenciais normais subiu 42 por cento, nesse mesmo período, tendo registado, só este ano, um aumento de 15,1 por cento.

Mas, antes de Florença, já a cosmopolita casa mãe da bolsa de Wall Street – Nova Iorque – tinha aprovado regras para limitar o Airbnb na cidade que nunca dorme.

O objetivo daquele que é um dos destinos mais visitados em Itália é libertar espaço para a população local, especialmente no centro histórico. Tal como em Lisboa, a cidade dos Medici debate-se com a falta de habitação a preços que caibam na carteira dos jovens casais, dos estudantes universitários e dos trabalhadores comuns.

Além da proibição de novos Airbnb, as novas regras para controlar o preço das casas e das rendas em Florença inclui ainda a redução fiscal de três anos para os senhorios que convertam propriedades turísticas em residências de habitação regular.

Em Dallas, EUA, há bairros inteiros onde é proibido o Airbnb. No Quebeque, Canadá, os anfitriões têm agora de ter licença para o serem e, em São Francisco, as casas só podem ser arrendadas 90 dias por ano. Em Paris, são 120 e, em Amsterdão, são apenas 30.

Se calhar, “radicais” mas nem por isso. Até no coração do capitalismo moderno mais liberal foi criada a Lei Local 18, que veio regulamentar os arrendamentos de curta duração em toda a Nova Iorque. Uma medida “radical” que foi criada para combater a especulação imobiliária numa das cidades com mais turistas em todo o mundo.

E é tão “radical” que limita a colocação de casas no Airbnb a anfitriões que residam na cidade – residentes, portanto -, e ainda têm de estar presentes quando alguém lá estiver hospedado. E cada pessoa só pode ter, no máximo, dois convidados.

Não se assistiu a ninguém a evocar a quarta ou a quinta emenda em Manhattan, não se viram motins em Florença nem o êxodo em Berlim. Barcelona continua a ter as ramblas e Paris a Torre Eiffel. E dizem que Dallas ainda tem o J.R.

Por cá, cai o Carmo e a Trindade com medidas tão “radicais” como as que se aplicaram em Nova Iorque. Multiplicam-se os que rasgam as vestes pela Constituição, há os que ameaçam imolar-se pelo fogo e os que agitam a bandeira do sovietismo por algo que é tão banal em França, Itália, Canadá ou até em terras do Tio Sam. Afinal, de que lado estarão os “radicais”?

André Julião
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André Julião

Jornalista
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