Passada a tormenta sobre a nomeação de Almeida Costa para o Constitucional, vale a pena rever a polémica. Houve dois tipos de argumentos a favor da nomeação, ambos expressos com uma euforia reveladora. O primeiro é que seria posta em causa a independência do tribunal se a sua ala PSD não tivesse o direito irrestrito de impor qualquer candidatura. Um dos arautos da escolha agora preterida disparou que a submissão a pacto maioritário é “uma selvajaria: a demolição do Estado de direito, o ataque direto à independência judiciária”. Não é para levar a sério: a composição do tribunal é votada pelo Parlamento, um órgão político, e as cooptações subsequentes resultam sempre de acordo, mobilizando uma maioria interpartidária. Tudo aqui é político e os juízes nomeados pelos partidos têm tido, em regra geral, o cuidado de escolher juristas de mérito reconhecido.
Tudo aqui é político e os juízes nomeados pelos partidos têm tido, em regra geral, o cuidado de escolher juristas de mérito reconhecido
O segundo argumento é mais curioso e não menos hiperbólico. É o que afirma que falta fundamento à oposição àquela escolha, dado que as críticas ao candidato resultam de um “ramalhete de desonestidade intelectual, fundamentalismo político e insensatez institucional”. O que é dito não é que o homem tenha mudado de opinião, desde que concluiu, já lá vão bastantes anos, que a lei não devia ser alterada e a mulher devia continuar a ser passível de condenação a prisão se abortasse (e corrigir a opinião é uma prerrogativa da reflexão). O que nos é garantido é que essa opinião foi — e será agora — razoável e que, assim sendo, nem requer justificação nem correção. O estranho desta alegação é precisamente o que exige que ela seja tão presunçosa, sabendo que a melhor defesa é o ataque.
Creio que aqui se movem dois processos. O primeiro é político: para uma parte da direita (Marcelo e Montenegro; o mesmo foi declarado em tempos por Ventura, mas este naturalmente desmentir-se-á a si próprio) o referendo pela legalização do aborto e a lei que dele resultou são irreversíveis, provaram na saúde pública e são indisputáveis no eleitorado. O caso está arrumado, a não ser para buscar uma polarização odienta, à la Trump, precisamente a agenda desta candidatura agora recusada pelo tribunal. Mas o segundo processo é cultural e mais profundo: o que choca em Almeida Costa não é só a sua doutrina pela punição das mulheres, é o programa da “averiguação prévia da ‘fenomenologia’ das gravidezes resultantes da violação”, dado que é “difícil determinar se se está, de facto, perante um crime daquela espécie, já que, em muitos casos, se verifica uma efetiva cooperação da vítima na sua consumação”. Ou seja, o candidato acha que a violação pode não ser crime, dado que a mulher é cúmplice “em muitos casos”. Há nisto uma tradição jurídica, do célebre acórdão da “coutada do macho ibérico” ao do Neto de Moura, a estirpe é a mesma. Ora, a maioria das pessoas, de esquerda ou de direita, prefere a sensatez a um juiz que busque a culpa da mulher na sua violação. Foi a sensatez que venceu, mas ficamos a saber do que anda por aí à solta.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 3 de junho de 2022
