A “organização” sempre se confundiu com a ideia de partido político, que é equivalente a dizer do funcionamento de hierarquias. Na realidade, em todos os partidos políticos existe uma estrutura hierárquica, no sentido da criação de níveis superiores de decisão que controlam o comportamento dos níveis inferiores, ou seja, que controlam a maioria dos seus membros. Isto significa que o partido político foi sempre sinónimo de verticalidade, implícita na própria noção de representação, enquanto a horizontalidade se refere a uma estrutura descentralizada de decisão, em rede, que produz relações não-hierárquicas entre vários nós de decisão. Neste sentido, a noção do grande partido de massas do século XX, que procurava dirigir todas as operações do processo político, é vista hoje por alguns historiadores como um sucedâneo político da grande empresa verticalmente integrada, dominante naquela época em certos setores de atividade económica, por ser capaz de produzir e controlar todas as etapas de uma fileira produtiva.
Já em 1911, de forma muito crítica, Robert Michels elaborou a “Lei Férrea da Oligarquia”, segundo a qual “a constituição de oligarquias no seio das múltiplas formas de democracia é um fenómeno orgânico e por consequência uma tendência à qual sucumbe fatalmente toda a organização, seja socialista ou mesmo anarquista”. Uma elite dirigente, que conduz a uma dinâmica oligárquica no interior dos partidos, impor-se-ia sempre devido a fatores como a necessidade de eficiência nas tomadas de decisão e a especialização de funções. As experiências do “socialismo real”, que descambaram nos Gulags e no comportamento autoritário dos partidos comunistas ajudaram a aprofundar a desconfiança generalizada em relação à ideia de partidos de massas e a favor da intervenção política por intermédio de movimentos ou redes de pendor dito horizontal. As próprias transformações tecnológicas, que conduziram à emergência das redes sociais e às possibilidades de organização em termos de plataformas digitais, diminuíram substancialmente os custos de organização e facilitaram a iniciativa política autónoma, dispensando o “aparelhismo” dos grandes partidos.
Mais recentemente ainda, os levantamentos das “primaveras árabes” e os movimentos de ocupação de praças e outros locais simbólicos um pouco por todo o mundo após a crise de 2007/8, que mostraram o descontentamento de muitos milhões de seres humanos, foram protagonizados por movimentos sociais e pouco ou nada influenciados por partidos. Porém, essas mobilizações, genericamente, foram incapazes de se sustentar e de produzir os efeitos pretendidos, levantando-se de novo o problema de saber qual a articulação mais eficaz entre diferentes formas de organização (partidos e movimentos), a própria ideia de organização e nela a função dos partidos. Tradicionalmente, à esquerda, esse imbróglio resolveu-se com a liderança política atribuída à função dirigente de uma classe social (o proletariado), sem que isso implicasse, necessariamente, o partido único e o determinismo histórico. O partido de massas do século XX, que fez do movimento organizado dos trabalhadores sua correia de transmissão e com aspiração a partido único é apenas a sua versão estalinista, não só insustentável, como indesejável por sufocar o pluralismo da função-vanguarda numa ecologia de rede.
Aceitar este pluralismo significa que a vanguarda é uma função contestável, que pode circular entre vários agentes, contingente, que se impõe pelo reconhecimento, desligada de uma visão histórica teleológica (isto é, definida à partida), e não é uma posição permanente, autoproclamada, infalível, associada a um desenvolvimento histórico linear. E isso é especialmente relevante no atual contexto de fragmentação do sujeito histórico revolucionário (proletariado) e da emergência de novos movimentos sociais que disputam a função-vanguarda a partir do seu próprio espaço de contestação específico. Os partidos que se limitem a ser uma espécie de câmara de eco desses movimentos e a promover a conexão com eles ficam prisioneiros da sua fragmentação, da sua instabilidade, dos seus tiques e de uma certa agenda política que só uma elite consegue acompanhar. Nesse sentido são o contrário daquilo que precisamos, do partido político que se dirige não só ao núcleo restrito dos ativistas que anima os novos movimentos sociais, mas também às massas estruturadas nas organizações tradicionais (sindicatos, Comissões de Trabalhadores, etc) ou às massas dispersas (atomizadas).
Tudo isto significa que organização não é apenas sinónimo de organização partidária. Ela envolve um conjunto de núcleos organizativos formais e informais, de infraestruturas e de recursos e respetivos apoiantes enraizados na vida quotidiana da maioria das pessoas, nos locais de trabalho, incluindo nas esferas da reprodução social (saúde, cuidados, transportes públicos) e em causas transversais a toda a sociedade (habitação, endividamento) que, globalmente, são desdobramentos da luta de classes. No fundo, organização é um instrumento da capacidade coletiva de intervenção para provocar mudanças na realidade que nos circunda e não será uma única forma de organização particular que o conseguirá fazer. Porém, nela os partidos políticos têm um papel insubstituível de garantia de continuidade da mobilização social, de síntese de ideias e de agregação das perspetivas parciais numa abordagem conjunta do todo, que só tem verdadeiro sentido transformador quando articulado com uma teoria da revolução.
É este o sentido da frase muitas vezes citada, segundo a qual não é possível separar mecanicamente as questões políticas das questões de organização. Só que esse princípio, ainda válido, tem de ser pensado à luz das transformações do capitalismo contemporâneo, das mudanças nas classes sociais e do balanço das experiências de dois séculos de história do movimento dos trabalhadores. Desde logo porque não se trata agora e apenas, como no início do século XX, de descobrir o tipo de partido que melhor se adequa aos objetivos políticos de derrube do capitalismo, mas de encontrar o sistema de organização, de que ele é parte integrante, capaz de mobilizar para essas tarefas as massas exploradas e oprimidas. Isso implica um tipo de partido em condições de lidar com a nova diversidade dos movimentos sociais e, ao mesmo tempo, com autonomia estratégica para resistir aos riscos de dissolução política e ao funcionamento puramente reativo, incapaz de subverter o sistema capitalista.
Artigo publicado em Raio de Luz a 31 de julho de 2024